sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Vera Magalhães: Governo normal faz diferença

Bolsonaro e Trump - para sempre, aliados

Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.

A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.

O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.

A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.

Ainda que o presidente tenha esse gesto isolado de comedimento (que pode ser quebrado a qualquer momento, numa live ou num aglomeração no cercadinho do Alvorada), a própria existência de um Daniel Silveira como deputado e a necessidade de que ele seja preso para parar de atentar contra a democracia mostram quão disfuncional é o governo Bolsonaro, e quanto o Brasil paga dia a dia por isso.

A diferença entre um governo tresloucado e um minimamente normal pode ser vista de forma didática nos Estados Unidos. A simples retirada de Donald Trump de cena e sua substituição pela equipe de Joe Biden fez com que fosse triplicado o ritmo de vacinação no país, a média diária de casos de Covid-19 despencasse de 195.064 para 77.665, e coisas simples como usar uma máscara deixassem de ser tabus ideológicos.

Por aqui, o presidente segue buscando milagres para enfrentar o vírus, enquanto seu ministro faz promessas sem nenhum amparo na realidade de centenas de milhões de doses de vacinas, sem estipular um cronograma seguro e claro de como elas serão fornecidas a estados e municípios.

O resultado dessa completa inépcia de Bolsonaro e Pazuello e do show de horrores da ala bizarro-ideológica do bolsonarismo é que também a economia é profundamente afetada. Em vez de se ocupar do desenho do projeto para a volta do auxílio emergencial e das medidas adicionais necessárias para garantir que ele não estoure as já depauperadas contas públicas, o comando da Câmara passou os últimos dias quebrando a cabeça para tentar livrar a barra do troglodita sem afrontar o STF. Mas ficou claro que, desta vez, os ministros não deixariam barato nenhuma atitude corporativista que fragilizasse o Judiciário.

A votação unânime dos 11 ministros delimita uma risca no chão. O Congresso parece ter entendido isso. O silêncio de Bolsonaro mostra que ele também sentiu o golpe. Que os eleitores também entendam que só elegendo políticos comprometidos com a democracia, o que esses de turno não são, o país poderá sair da anormalidade absoluta para o mínimo de paz que todos pedem em vão nos seus posts no Twitter.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, edição de 19.02.2021.

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