quarta-feira, 25 de novembro de 2020

"Todo ajuste que o Ministério da Economia apresenta, o Presidente diz que não quer"

Economista afirma que falta do comprometimento do governo com agenda reformista resultará em ambiente econômico instável e prevê flexibilização do teto dos gastos      

O governo de Jair Bolsonaro errou na calibragem do pacote fiscal lançado no primeiro semestre deste ano para conter os efeitos econômicos da pandemia e, por enquanto, não dá sinais de que conseguirá colocar a dívida em uma trajetória sustentável, na avaliação da economista Zeina Latif. Para ela, algumas falhas na condução da economia durante a quarentena são perdoáveis, pois todos estavam “no escuro”, mas o governo não se esforçou para limitar os gastos. “É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Tem de ter articulação do governo”, diz Zeina.

Segundo a economista, agora seria o momento para avançar nas reformas estruturais, mas a falta de disposição de Bolsonaro para adotar medidas impopulares aumenta o desafio. “Tudo que o Ministério da Economia leva, ele (o presidente) diz que não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’.”

Zeina, porém, é contra o aumento de impostos, pois a iniciativa poderia resultar em uma atividade econômica mais fraca. Diante desse cenário que combina dívida crescente e falta de comprometimento do governo com reformas, ela prevê um ambiente macroeconômico instável, o que prejudicará o crescimento, e alguma flexibilização da regra do teto de gastos (lei que limita as despesas federais ao valor do ano anterior, corrigido pela inflação).

● O FMI aponta que a dívida brasileira deve chegar a 100% do PIB neste ano. Que impacto isso terá na economia?

Estamos falando de um Brasil que já destoava nesse conceito de outros países emergentes parecidos conosco, como vizinhos da costa do pacífico na América Latina. Se já destoávamos, agora destoamos ainda mais. Além de esse número ser elevado, estamos em uma trajetória de crescimento da dívida. Isso traz preocupação e, por isso, alguns economistas acham que será inevitável o aumento da carga tributária. Eu acho que seria muito importante evitar esse aumento. Se temos esse quadro de dívida elevada e crescente, mas ao mesmo tempo um governo que sinaliza seu compromisso, de forma crível, de manter a responsabilidade fiscal, de fazer reformas, fica mais fácil navegarmos. Porque aí os investidores falam: ‘Está elevada, mas sei que, lá na frente, tudo vai dar certo; o governo está comprometido’. Essa sinalização é essencial. Não se trata apenas do número em si, mas da expectativa de que, lá na frente, vai conseguir consertar. Aí é possível evitar o aumento da carga tributária e uma postura mais defensiva de investidores. Hoje a gente já vê investidores não querendo mais financiar o Brasil, mas é claro que o espaço para piorar é grande.

● Além de subir carga tributária, medida a qual a sra. é contra, que outras iniciativas podem ser adotadas para evitar uma deterioração fiscal maior?

O certo é fazer reformas estruturais para conter o crescimento de despesa obrigatória. Os economistas que falam que vai ter de aumentar a carga tributária, no fundo, estão falando o seguinte: ‘o governo não vai fazer reforma’. Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária. Aumentar a carga tributária é coisa de país preguiçoso. Não fizemos a lição de casa, bateu o desespero, e aí criamos uma CPMF. Todo esforço tem de ser feito para desenhar uma estratégia crível para a contenção de gastos obrigatórios.

Zeina Latif é economista com doutorado pela USP. Consultora econômica, foi economista-chefe da XP e passou por instituições financeiras como o Royal Bank of Scotland, ING, ABN Amro e HSBC. É colunista do Estadão.

● A OCDE e o FMI estão orientando os países a aumentarem os impostos e a progressividade deles para pagar a conta da covid. A excepcionalidade do momento, dada a explosão de gastos que foi necessária por causa da pandemia, não permite um aumento?

Considerando a situação do Brasil, que já tem uma carga tributária que destoa e que tem uma estrutura tributária que gera muitas distorções e machuca o crescimento econômico, acho que (aumentar impostos) seria agravar a crise. Quando a gente fala de a dívida pública ter uma trajetória sustentável, tem de olhar o denominador (da relação dívida/PIB). Se tentamos fazer o ajuste via carga tributária e desconsideramos o efeito disso no PIB, acho que será pior. Esse é o grande legado do Alesina (Alberto Alesina, economista italiano morto neste ano, conhecido como ‘o pai da austeridade’): se for para fazer ajuste fiscal, tente fazer pelo lado da despesa estrutural. Do lado da arrecadação, vai ser menos eficiente. Se se falasse assim no Brasil: ‘Estamos fazendo uma reforma tributária que vai ter uma tremenda simplificação, eventualmente um aumento da carga, mas já em uma base menos distorcida’, aí poderíamos começar a conversa. Agora, nessa estrutura tributária que temos, é tiro no pé. Algumas pessoas falam que tem de aumentar a carga tributária porque ela historicamente está baixa em relação ao passado recente, mas aí seria via eliminação de renúncias tributárias - o que não é uma agenda fácil.

● Quando a sra. fala de reformas que poderiam resolver o problema fiscal, o que é prioridade?

Do lado de contenção de despesas, não tem bala de prata. Não é que vai fazer uma reforma, do tipo da reforma da Previdência, e vai resolver. Vai ter de trabalhar em várias frentes. E a gente se preocupa porque tem recomendações básicas de política econômica que todo mundo sabe que precisam ser feitas, mas há pouca disposição do presidente Jair Bolsonaro. Tudo que o Ministério da Economia leva, ele diz que não quer. Para a reforma administrativa, ele diz que não pode mexer com os atuais servidores. Rever as políticas sociais, reempacotá-las, ele também não quer. Refazer a PEC Emergencial para reduzir a folha em situações de emergência, não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’. Não dá para descartar esse cenário.

● Se houvesse uma vontade real de fazer as reformas, quanto tempo teríamos para aprová-las? Ou dar uma sinalização de que elas vão avançar é suficiente?

Uma sinalização forte é ter um consenso no governo, não é o ministro da Economia falar uma coisa, mas a Casa Civil pensar outra e o presidente não se comprometer. Primeiro tem de ser crível o compromisso. Temos de olhar e entender que é uma agenda de governo. Esse consenso interno se traduz em articulação e diálogo no Congresso. Quando o (ex-presidente Michel) Temer entrou, a gente viu as expectativas inflacionárias desinflando, o mercado cambial também, porque se enxergava um plano de voo e, ao mesmo tempo, a sinalização de que haveria capacidade de aprovação no Congresso. Não havia sido feito ajuste fiscal nenhum ainda, mas já via o mercado melhorando as expectativas e os preços de ativos. Tendo credibilidade, você vai ganhando tempo, o que não quer dizer que você não tenha de entregar resultado. A forma como o governo faz hoje é muito atabalhoada, manda várias PECs de uma vez, congestiona o Congresso.

● Se o governo continuar com essa postura, qual será o resultado na economia?

A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado. O que vejo é que tem um grau de incerteza. A gente não sabe qual é o Orçamento do ano que vem. Acho que não será um cenário em que o governo revoga a regra do teto, porque, quando o mercado financeiro reage, isso assusta (o governo). Então, acho que vai ser um ambiente ruidoso, com alguma flexibilização na regra do teto, ainda que informal.

“Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária”

● Mas que impacto tem isso na economia em geral?

É um ambiente macroeconômico um pouco mais instável. Aquilo que a gente já tem visto. Por exemplo, o dólar destoando do que seria o sugerido pelo cenário internacional. O câmbio poderia estar mais próximo de R$ 4,50 se a gente tivesse um compromisso fiscal. O Banco Central possivelmente vai ter de subir juros antes da hora. Você vai tendo uma piora, ainda que não degringole o ambiente macroeconômico, como foi o cenário com Dilma (Rousseff), mas ele fica um pouco mais instável. Isso não é boa notícia, porque, quando a gente fala em recuperação da economia, um ambiente macroeconômico mais estável é pedra fundamental. Só o fato de você não saber para onde vai o dólar gera incertezas. Isso machuca o crescimento.

● Em março, os economistas foram quase unânimes ao defender aumento dos gastos do governo para reduzir os impactos da crise da pandemia. Houve um erro de calibragem nesses gastos?

A gente gastou demais. Tinha de ter gastado menos. Eu estava na outra ponta.

● Mas aí não teríamos uma crise social ainda mais aguda, além da deterioração da relação dívida/PIB, dado que o PIB recuaria ainda mais?

É que o diabo mora nos detalhes. Uma coisa é ter de fazer socorro, mas gente desperdiçou recursos na ajuda aos Estados. Foi um volume de recursos além da queda de receita. Tem Estado que está com um caixa que nunca teve. Houve alguma contrapartida dos Estados? Exigiram ajustes? Nada. Esse auxílio emergencial foi absolutamente descalibrado. O auxílio emergencial era para dar subsistência para pessoas vulneráveis. Olha o crescimento das vendas do varejo e da indústria. É absolutamente artificial. Errou na dose.

● Não há um impacto positivo? A queda no PIB será menor.

Não. É sonho de uma noite de verão. É transitório, porque é um crescimento artificial. A fatura já está chegando. Por que o câmbio está assim? Tem de tomar cuidado. Eu fui contra o tempo todo ao discurso de 'vamos gastar e depois a gente vê'. Não existe isso. Recurso público tem de ser usado com zelo. O Brasil, em relação aos emergentes, destoou de novo. A gente gastou como se fosse a Alemanha e gastou mal, porque a gente se preocupou muito em sustentar o consumo e podia ter calibrado mais para ajudar novas empresas.

“A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado.”

● A que a sra. credita esse erro de calibragem?

Tem coisa que é perdoável. Ali, na largada, seria injusto querer que o governo conseguisse tudo. Era impossível. Estava um pouco no escuro mesmo. Agora, o Congresso foi lá e aprovou o auxílio emergencial de R$ 600. O governo tem de chegar e falar: ‘nossos estudos estão falando que não pode ser tudo isso e que tem de ser muito focalizado’. É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Se o governo manda medida para aumentar gasto, o Congresso vai aprovar e até vai fazer mais. Tem de ter articulação do governo. O governo não usou os recursos na saúde totalmente. Veio um auxílio emergencial com problema de calibragem e operacional. Teve funcionário público e militar que receberam o auxílio. Faltou essa calibragem e pensar no dia seguinte.

● Ainda dá tempo de consertar?

Geralmente, quando tem uma crise econômica, é aí que a gente faz reformas. Então não vamos desperdiçar essa crise, né? A crise é séria e não só no nível federal. Nos Estados, a situação vai ficar complicada, porque eles têm de voltar a pagar a dívida. Parte do aumento da arrecadação dos Estado foi artificial. Então não vai seguir nesse ritmo. As despesas são crescentes. Tem Estado que ainda não fez reforma da Previdência. Tem Estado que fez, mas foi tímida, foi meramente aumentar a contribuição, sem mexer nas regras para a aposentadoria. É muito importante que o governo mapeie os riscos e identifique o que se pretende fazer para lidar com esses assuntos. Se flexibilizar a regra do teto sem ter feito um esforço mínimo para conter despesas, aí a gente vai ter uma piora mais sensível do ambiente macroeconômico. Os agentes vão falar: ‘você está criando despesas no curto prazo e nem se preocupou em cortar no longo prazo?’.

Por Luciana Dyniewicz. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 25.11.2020

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