quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Darwinismo social

O algoz dos pobres não é o teto de gastos, mas a indiferença dos que só pensam em eleição

A cada nova ideia produzida no Ministério da Economia sob o comando de Paulo Guedes para encontrar meios de financiar os projetos encomendados pelo presidente Jair Bolsonaro, fica mais evidente a vocação darwinista social de um governo que se elegeu sob a bandeira do liberalismo.

Liberalismo nada tem a ver com darwinismo social. O verdadeiro liberal jamais consideraria empobrecer a população, reduzindo a capacidade dos mais vulneráveis de usufruir integralmente das liberdades prometidas pela democracia. Ao contrário: o liberalismo digno do nome entende que a interferência estatal se faz necessária justamente para criar condições para que todos e cada um dos cidadãos tenham chances de prosperar. Um Estado que, em vez disso, amplia os obstáculos para os mais pobres, seja qual for o pretexto, não é movido pela razão liberal, e sim pelo mais perverso espírito da lei da selva.

É assustadora a lista de propostas do governo Bolsonaro que castigam os pobres a pretexto de ajudá-los. A mais recente, para ajudar a financiar o Renda Brasil – substituto bolsonarista do petista Bolsa Família –, congelaria as aposentadorias por dois anos, sem a reposição nem mesmo da inflação. Outra ideia do mesmo naipe era taxar o seguro-desemprego com o objetivo de bancar um programa de geração de empregos para jovens. Quem formulou tais propostas ou “não tem um mínimo de coração”, como disse Bolsonaro, ou o fez com o objetivo de chocar a sociedade para demonstrar que afinal é impossível fazer o que exige o presidente: ampliar gastos sem cortar despesas nem mexer com privilégios.

Como se sabe, Bolsonaro quer tudo sem abrir mão de nada. Um exemplo é a reforma administrativa. Sob pressão diante do engessamento orçamentário causado em parte pelas despesas com salários de servidores, o presidente aceitou encaminhar enfim uma proposta de reforma do serviço público, mas exigiu que não valesse para os atuais funcionários. Ou seja, é uma reforma apenas para cumprir tabela.

O mesmo espírito presidiu a conturbada formulação do Renda Brasil. Bolsonaro queria um programa de transferência de renda melhor do que o Bolsa Família, mas, para bancá-lo, não aceitou que se reduzisse nenhum outro programa social nem avalizou discussões sobre corte de subsídios e isenções. Ao contrário, sempre que pode, como no caso da isenção fiscal para igrejas, defende esse tipo de benefício, herança patrimonialista que Bolsonaro não faz questão nenhuma de extinguir, malgrado suas promessas de modernização do País.

A hora da verdade, contudo, se aproxima: no final do ano, o auxílio emergencial para quem perdeu renda na pandemia de covid-19 vai se extinguir, e o presidente, que está em campanha pela reeleição desde que tomou posse, tem todo o interesse em continuar a distribuir dinheiro a esses eleitores, que de muito agradecidos tendem a ficar muito contrariados com o fim da ajuda. O problema é que o pagamento do auxílio emergencial só foi possível porque está enquadrado no chamado “orçamento de guerra”, que, a título de combater a pandemia, permite gastos acima do teto. No ano que vem, salvo alguma manobra irresponsável, essa despesa já não será mais permitida.

Bolsonaro vai criando assim a atmosfera apropriada para a desmoralização do teto de gastos e para a recriação da famigerada CPMF, oferecida pelo ministro Paulo Guedes como fórmula mágica para entregar os programas de emprego e renda bolsonaristas enquanto mantém outros benefícios sociais e desonera a folha de pagamentos.

Se isso prosperar, mais uma vez a conta será paga pelos pobres. A CPMF é eminentemente regressiva, pois afeta toda a cadeia produtiva nas duas pontas da transação financeira, elevando preços. Já a irresponsabilidade fiscal, como está mais do que provado, pode ser muito útil para os demagogos, mas é péssima para o País, pois pressiona a inflação e os juros e inibe investimentos, dificultando a geração de empregos e o crescimento da renda.

Que fique claro de uma vez por todas: o algoz dos pobres não é o teto de gastos, mas a indiferença cruel daqueles que só pensam em eleição.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
17 de setembro de 2020 | 03h00

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