segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20% dos servidores do governo federal têm funções que poderão ser feitas por máquinas, diz estudo

Dos 521,7 mil servidores civis analisados, mais de 100 mil estão em ocupações com alta propensão à automação, segundo pesquisa

Um a cada cinco funcionários públicos civis do Executivo federal têm ocupações com "elevado potencial" de terem tarefas substituídas por máquinas nas próximas décadas.

Essa conclusão é parte de uma pesquisa que está em desenvolvimento a pedido da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e teve resultados divulgados em artigo assinado pelos economistas Willian Adamczyk, Leonardo Monasterio e Adelar Fochezatto.

Eles apontam que se trata do primeiro estudo focado nos possíveis efeitos da automação para o setor público no Brasil.

Mas os resultados não implicam necessariamente na dispensa do trabalho de alguns servidores, esclarece Adamczyk à BBC News Brasil.

O pesquisador diz que identificar tarefas que podem ser substituídas por máquinas podem ajudar o governo a determinar habilidades necessárias para requalificar os servidores atuais e também para futuras contratações.

1,5 milhão de crianças sem creches e 11 milhões de analfabetos: os desafios urgentes para o Brasil 'passar de ano' na educação

Altos salários e 'regalias': por que a reforma administrativa de Bolsonaro é mais branda do que desejava Paulo Guedes

Turnos alternados? As ideias que podem mudar o ambiente de trabalho pós-coronavírus

O estudo é baseado na construção de algoritmos capazes de prever a propensão à automação de cada função e aumentar assim a produtividade e reduzir custos no serviço públic

O ponto de partida dos autores é que o setor público segue, com defasagem, as tendências de automação do setor privado.

Eles analisaram as funções de 521,7 mil servidores civis do Executivo federal. Esse é o total de funcionários do governo federal com carga horária igual ou superior a 40 horas semanais que havia em 2017, segundo os dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape).

A pesquisa constatou que mais de 100 mil estão em ocupações com alta propensão à automação — ou seja, pouco mais de 20%.

Considerando todas as cargas horárias, a quantidade de servidores civis do Executivo no fim de 2017 chegava a 634,1 mil. Hoje, com aposentadorias e menos concursos para reposição de funcionários, esse número caiu para 601,9 mil, de acordo com o Painel Estatístico de Pessoal.

Ocupações com mais chances de automação

As ocupações com mais chances de automação têm em comum menores níveis de escolaridade e remunerações mais baixas.

Por isso, a participação desse grupo na folha de pagamento é menor: representam R$ 595 milhões do total de mais de R$ 5 bilhões da folha mensal do Executivo federal referente a 2017. Isso equivale a pouco mais de 11%.

Com maior propensão à automação, aparecem nas primeiras posições técnicos de sistemas audiovisuais, além de servidores da construção civil, como armador, pedreiro, pintor e carpinteiro.

A remuneração média desses profissionais está abaixo da média de R$ 9.913 para o total de ocupações analisadas.

"No caso do  pedreiro, a automação pode se dar por inovações nos processos de construção, como o uso mais intensivo de pré-moldados, ou processos que ainda não são economicamente viáveis, como a impressão 3D em larga escala", diz Adamczyk.

A maioria dos funcionários públicos com cargo de pedreiro já está aposentada, mas hoje existem mais de 200 servidores na ativa com essa função, vinculados principalmente a universidades federais, segundo o Painel Estatístico de Pessoal.

Na outra ponta, com os menores riscos de substituição por inteligência artificial, estão as funções de pesquisadores (em engenharia, saúde, ciências sociais, educação), perito criminal, biólogo, gerente de serviços de saúde e psicólogo clínico.

A maioria dessas funções tem remunerações acima da média de R$ 9.913 para o total de ocupações analisadas.

Pesquisadores em áreas como engenharia, saúde, ciências sociais e educação estão entre as ocupações com os menores riscos de substituição por inteligência artificial

Os autores apontam que as atividades mais comuns entre esses pesquisadores são as que envolvem desenvolvimento de novos materiais, produtos, processos e métodos.

São funções que "estão na fronteira do conhecimento e longe de possibilitarem uma padronização em seus processos, dada a elevada complexidade das tarefas e necessidade de elementos de criatividade e inovação para que sejam executados."

Também aparecem com baixa propensão à automação profissionais como economistas, sociólogos, geógrafos, biólogos, psicólogos e antropólogos, além de outras funções que "desempenham atividades centrais para o desenvolvimento das próprias tecnologias de automação."

"A tendência é de substituição das tarefas mais repetitivas e que envolvem tomada de decisões mais simples. Por exemplo, calcular e devolver um troco, anotar um pedido, passar informações básicas, preencher formulários e planilhas. Ocupações de maior qualificação serão mais difíceis de automatizar por realizarem tarefas complexas abstratas, não rotineiras, que exigem criatividade, negociação, persuasão e atenção a pessoas ou equipes", diz Adamczyk.

O pesquisador pondera que uma ocupação ser propensa à automação não significa que ela necessariamente deixará de existir.

"Significa que ela poderá se aproveitar da introdução de novas tecnologias, ora para complementar e melhorar a produtividade do trabalhador, ou então para reformular completamente essa ocupação."

'Rigidez' do setor público

Entre os órgãos do Executivo, o Ministério da Educação é o que aparece com maior número de ocupações com alta propensão à automação: 78 das 272 que compõem o órgão.

Entre elas, estão assistente administrativo, auxiliar de escritório, auxiliar de biblioteca. O Ministério da Saúde aparece em segundo, com 26 de suas 129 ocupações com alta propensão à automação.

Os autores destacam que o setor público tem mais rigidez para adaptar a força de trabalho às mudanças na tecnologia e que, portanto, há uma defasagem em relação ao setor privado.

"Enquanto o setor privado tem flexibilidade para ajustar-se às mudanças tecnológicas por meio de contratações, demissões e realocação de funcionários, contando com o mecanismo de preços como sinalizador, o setor público tem possui maior rigidez para ajustar sua força de trabalho frente às mudanças tecnológicas."

Adamczyk aponta que metade dos servidores do governo federal estarão em condições de se aposentar nos próximos 20 anos e que isso representa uma saída massiva de conhecimento de difícil reposição, além de aumento dos gastos com servidores inativos.

Nesse contexto, diz ele, os resultados da pesquisa "podem fomentar a discussão sobre novas habilidades e qualificações necessárias para retreinar os servidores atuais e contratar novos servidores no futuro".

"As tecnologias de automação devem ser vistas como aliadas da sociedade brasileira para a continuidade dos serviços públicos prestados, melhoria na qualidade e redução de gastos — nessa ordem", diz o pesquisador.

Funcionário público pode ser demitido?

Congresso vai analisar a proposta de reforma administrativa enviada pelo governo Bolsonaro

É importante lembrar que os servidores públicos hoje têm estabilidade no cargo garantida pela Constituição — que prevê a perda do cargo só em situações muito específicas, como em caso de condenação sem mais possibilidade de recurso na Justiça.

Em um eventual cenário de extinção do cargo, a Constituição estabelece que o servidor recebe remuneração proporcional ao tempo de serviço até ser aproveitado em outro cargo.

As regras do funcionalismo público, no entanto, estão em discussão e podem ser alteradas pelo Congresso Nacional.

O governo do presidente Jair Bolsonaro enviou ao Legislativo a reforma administrativa, que pretende mudar regras de contratação e progressão na carreira para futuros servidores, inclusive facilitando a demissão, ao propor o fim da estabilidade para servidores que não estejam nas chamadas carreiras típicas de Estado (que ainda seriam definidas, segundo a proposta).

Laís Alegretti - @laisalegretti, da BBC News Brasil em Londres

Nenhum comentário: