terça-feira, 18 de agosto de 2020

O duelo justo no processo

Litigantes devem atuar com paridade de armas, para manter o equilíbrio da disputa judicial

Conforme ensinança do festejado professor Miguel Reale, a quem sucedi na Academia Mackenzista de Letras, Direito é “um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros”. Em outras palavras, representa um conjunto de regras e normas que regulam a vida em sociedade, sem o que seria impossível a convivência social humana. Em que pese a heterogeneidade de nossa civilização, ela guarda certa similitude entre os mais diversos ordenamentos, representada no tratamento isonômico reservado aos litigantes.

Na Babilônia, a lei de talião pregava o “olho por olho, dente por dente”, uma fórmula cruel e bárbara, que se distanciava da punição com justiça. Com o passar dos tempos, o Direito foi se desenvolvendo e, com ele, a noção de igualdade. Na Roma Antiga, havia a Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), que consagrava a igualdade entre patrícios e plebeus. Por sua vez, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) dispôs em seu artigo 1.º que “os homens nascem e são livres e iguais em direito”. A isonomia, nesse caso, assume uma feição formal, eis que estabelecida perante a lei, o que a faz ignorar as possíveis desigualdades existentes no plano fático.

Todavia não se deve buscar somente essa igualdade consagrada pelo liberalismo clássico. É necessário considerar as desigualdades existentes na sociedade, desapegando-se, portanto, de sua concepção formalista. Desse modo, aqueles que se encontram em situações desiguais devem ser tratados de forma desigual.

Nesse sentido, Rui Barbosa, em seu célebre discurso conhecido como Oração aos Moços (1920), já dizia que “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Trata-se, pois, do conceito de igualdade material, que respeita as especificidades de cada indivíduo, descartando a ideia de que a sociedade seja algo homogêneo.

O princípio da isonomia está consagrado no artigo 5.º, caput, da Constituição da República, sendo positivado também pela legislação infraconstitucional, consoante se observa nos artigos 7.º e 139, inciso I, do Código de Processo Civil, que visa a assegurar aos adversários o duelo justo.

Desse modo, na seara processual, o aludido consectário se desdobra na premissa de que os litigantes devem atuar com paridade de armas (par conditio), a fim de manter o equilíbrio da disputa judicial, e de que casos iguais devem ser tratados de modo indistinto.

Entretanto, o fiel da balança da justiça em algumas hipóteses pode pender para um dos lados. Isso ocorre, por exemplo, quando o magistrado, mesmo com conhecimento, fecha os olhos para situações em que houve prévio trânsito em julgado, isto é, quando não é mais cabível qualquer discussão a respeito da matéria, e as julga como se nada ocorrera anteriormente. Encontra, pois, subterfúgios para justificar a sua análise.

Essa situação acontece, sobretudo, nas causas em que há uma área nebulosa em relação às atribuições do Ministério Público (MP) estadual e do federal. Tome-se como exemplo uma ação civil pública promovida pelo parquet estadual já finalizada sem restrições probatórias, com exaurimento das vias recursais, e tempos depois outra ação civil pública, agora promovida pelo MPF, contra o mesmo réu, com idêntico conteúdo da primeira, sem fato novo ou provas novas, ainda que sob o fundamento de interesse coletivo.

Vale ressaltar que é consolidado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, nas ações coletivas, a identidade de ações se verifica por meio do exame dos beneficiários dos efeitos da sentença, além da defesa dos mesmos interesses, sendo irrelevante, portanto, a existência dos mesmos autores.

Dessa forma, no exemplo acima, jamais poderia ter sido ajuizada uma ação civil pública exatamente nos mesmos moldes da anterior, eis que idênticas. O seu processamento macularia o primado que resguarda a imutabilidade do efeito das decisões, o que é inadmissível no ordenamento jurídico, além de propiciar um eventual conflito prático entre os julgados, se eles forem contraditórios, o que poderia atingir os interesses da sociedade.

Por sua vez, a segurança jurídica e o princípio da proteção à confiança, cujos fundamentos repousam no Estado de Direito, também são atingidos, na medida em que são frustradas as expectativas legitimamente criadas no sujeito por atos estatais, a estabilidade das relações jurídica, bem como a certeza que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas. Ademais, observa-se ainda que não se poderia falar em paridade de armas, uma vez que uma das partes se encontra em posição de desvantagem em relação à outra.

O magistrado parcial, que fica inerte quando deveria agir sem necessidade de provocação, subverte o sistema processual, visto que confere tratamento privilegiado a uma parte em detrimento da outra, abrindo espaço para que se produzam decisões que se afastam do conceito de justiça.
     
José Carlos G. Xavier de Aquino, o autor deste artigo, é Desembargador - Decano do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 
18 de agosto de 2020 | 03h00

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