quarta-feira, 8 de julho de 2020

O presidencialismo envenenado

Trata-se de um jogo de par ou ímpar entre a sociedade e seus Poderes cheios de dedos

Para Maquiavel, o governante encontra sempre razões legítimas para quebrar sua promessa. Para Lampedusa, quem propõe mudar tudo quer que tudo continue como está. Dois clássicos italianos sobre a incorrigível mania da política de agir acima da lei.

Não escrevo para escarnecer do governante que disse ser fácil implantar uma ditadura no País. Por que confia que a Justiça não encontre a má evidência do que disse? Não vejo lógica em tomar formicida para saber se mata. Melhor levar a sério.

Ninguém se torna o que não pode deixar de ser. A suavização combinada de desejos não extingue o princípio legal da não contradição.

Como todo mundo pode ser presidente pelo princípio da universalidade de direitos, basta partir para cima do eleitor. Espírito de aventura, esquema, capacidade, nada importa. Logo alguém da oligarquia presidencialista aplica no eleito a droga da governabilidade, o sapatinho apertado de cinderela oferecido pelo feudalismo brasileiro a todo vitorioso que chega ao poder. Com o despreparado é pior. Após a posse o governante se acha forte e arrebatador. Não é o primeiro, mas underground assim é insuperável.

Barulho ou silêncio são mobilizadores. O presidente se conecta ao sofrimento psicológico da população como o entende. A eleição presidencial anda impulsionando o enfraquecimento das pessoas como cidadãos. Atordoado pela propaganda política falsa e pela longa e real paralisia econômica, o indivíduo confinou sua alma no outro, e ali alienou sua esperança.

O método segregador, base do presidencialismo pragmático, popular e arregimentador, continua a dividir o País. Visa à dispersão de todos no individualismo dos direitos individuais exclusivos. Nascido da virtude das lutas sociais autônomas, passou a ser manipulado pelos governos. Serviu de atalho para alimentar o patinho feio do livre-arbítrio que sustenta a agenda atual. Porte de arma, codinome, não usar máscara, linguagem libidinal agressiva, informante confidencial, invadir hospital, diplomacia recalcada, justiceiros, fake news, abandono da saúde e da educação.

O governo usa o avesso da política de ação afirmativa para acabar com o diálogo, formar guetos para seu usufruto. Tabus estimulados por Poderes institucionais costumam ser o caos, fantasiados de liberdade.

No presidencialismo cada um desenvolve sua maneira de tocar a coisa. Quando o estilo esbarra num problema, procura logo disfarçar para calibrar a mágoa dos insatisfeitos. É regra do sistema secreto que nos governa agir como areia movediça. Espere no céu para saber quantos problemas são necessários para fazer do governante um problema.

Há um Brasil que não merece o Brasil onde se expressa um Estado falso permanente. De um lado, a humanidade da pessoa comum, de outro, a legalidade dos costumes feudais, o poder da oligarquia. A prevalência do segundo sobre o primeiro não deixa a substância da economia, da cultura e da ordem social sarar a cicatriz da repressão contra a modernidade, a criatividade e a paz. É a tutela da verdade, a falta de crédito da vida comum, a deseducação que paralisa a democracia.

O presidencialismo deve ser compreendido como psicologia aplicada ao comportamento da autoridade. O povo encena a peça do teatro do governante inapto, mas cheio de desejo, oportunidade e aliados de ocasião. A irracionalidade que é mandar sem saber amplia o caminho para o desregramento pessoal dentro do sistema. O que permite à minoria unida impor seu estilo e se expressar por meio da manipulação da maioria dispersa.

Tudo isso funcionou até aqui porque o fardo de empurrar o governo até o fim é a calma do povo. Este privilegiado cidadão é a vítima que assume a culpa pelo que as autoridades não fazem e o acusam de ser a origem de tudo. Não é certo acusar alguém de escolha errada se o candidato – indicado por partido e aprovado pela Justiça – atravessou na frente da urna fazendo o V com dois dedos, sorrindo sem pecado visível.

Já por qualquer slogan somos paralisados em crença errada. Continua o País escamoteando seu futuro, contido nos limites de um sujeito. O presidencialismo é a melhor forma de o governante autoritário contaminar quem o fiscaliza. E como diz o Talmud, se dois saem da mesma chaminé, os dois saem sujos.

Pobre cidadão desconectado, sobrevivente vulnerável da má higienização governamental. De repente fica sabendo que há um nível de decepção para a porca torcer o rabo e nele o sofrimento dos outros não conta. Enquanto o poder, inautêntico na falsa etiqueta, espera que cada um não cumpra seu dever. O eleitor pressente a impotência e o convite patológico para tolerar o agressor.

Assim é o presidencialismo. Não tendo nada que o prenda ao dia a dia das pessoas, o sistema político não exige do governante pudor e cautela. Antes consente nele toda imprudência no presente e negligência diante do futuro.

Não depende tanto de disposição do titular mudar as coisas. O presidencialismo que inventamos é dirigido por mau costume e desinteresse de limites. É um jogo de par ou ímpar entre a sociedade e seus Poderes cheios de dedos.

O autor deste artigo, Paulo Delgado, é sociólogo. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo
08 de julho de 2020 | 03h00

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