quarta-feira, 24 de junho de 2020

Salve-se quem puder

Presidente confirma que não compreendeu a dimensão da crise que lhe coube administrar

O presidente Jair Bolsonaro disse que o governo não tem como pagar mais duas parcelas de R$ 600 de auxílio emergencial para os trabalhadores que sofreram drástica perda de renda em razão da pandemia de covid-19. Segundo Bolsonaro, “a União não aguenta outro (pagamento) com esse mesmo montante”. Desse modo, o presidente confirma que não compreendeu a dimensão da crise que, quiseram os fados, lhe coube administrar.

Nenhum chefe de Estado digno do cargo que ocupa poderia sequer imaginar a hipótese de deixar à própria sorte milhões de concidadãos que repentinamente se viram privados de quase tudo por motivos alheios à sua vontade. E esses motivos não cessaram - muito ao contrário, como mostram os terríveis números do avanço da doença no País.

Para Bolsonaro, contudo, é preciso ter “responsabilidade”. E por “responsabilidade” o presidente entende que é a preservação das contas nacionais à custa da penúria de seus concidadãos.

Isso, numa hipótese benevolente, mostra que o presidente não entendeu nem seu papel na condução do País nem o risco que correm seus desafortunados governados. Já numa hipótese menos benevolente, pode-se especular, dada a insistência de Bolsonaro no erro mesmo diante de inquestionáveis evidências, que haja aí algum propósito político inconfessável - como, por exemplo, o de atribuir a governadores, muitos deles seus desafetos, a responsabilidade pela privação que afeta milhões de eleitores.

Afinal, desde sempre o presidente insiste, como tornou a fazer agora, que “talvez tenha havido um certo exagero no trato dessa questão”, referindo-se à imposição de isolamento social nos Estados, medida que desacelerou brutalmente a economia. O consenso entre todos os que prezam a ciência e não a irresponsabilidade é o de que esse, afinal, é o custo de salvar milhares de vidas e que cabe aos governos encontrar maneiras de mitigar os efeitos econômicos.

O auxílio emergencial é uma dessas maneiras, e uma das mais importantes. Seu custo integra o chamado “orçamento de guerra”, que dá ao governo liberdade de gastar o que for necessário para enfrentar a crise, sem as amarras fiscais do Orçamento regular e enquanto durar o estado de calamidade pública - que originalmente vai até o fim do ano.

Ou seja, o presidente não tem razão quando invoca o risco de insolvência da União como pretexto para deixar de pagar o auxílio emergencial no atual valor. “É exagero de quem diz isso”, afirmou, com razão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao comentar a observação do presidente. “O governo não pode esperar mais para prorrogar o auxílio. A ajuda é urgente e é agora”, enfatizou o deputado, que defende o pagamento dos R$ 600 por mais dois ou três meses, enquanto o governo estuda pagar mais duas parcelas, mas com valor inferior - especula-se algo em torno de R$ 200 ou R$ 300.

Em vez de tratar do auxílio emergencial como uma questão puramente fiscal e de tentar transformar a pandemia em ativo eleitoral, Bolsonaro - que, nunca é demais lembrar, é também presidente do comitê de gestão da crise criado junto com o “orçamento de guerra” - deveria empenhar-se para que esse auxílio chegue a quem precisa desesperadamente dele. Deveria assumir a coordenação dos esforços para lidar com a doença e com o impacto econômico. Deveria lamentar por cada um dos mais de 50 mil mortos nessa tragédia. Assim faria um estadista.

Mas Bolsonaro sempre preferiu fazer pouco da doença, dos doentes e dos que cuidam deles, investindo as energias nacionais em debates inúteis sobre remédios miraculosos e sobre supostas fraudes nos números de mortos para prejudicá-lo. Desfez-se de dois ministros da Saúde porque estes se recusaram a avalizar seus devaneios e segue dizendo que “não podemos deixar que o efeito colateral do tratamento da pandemia”, isto é, a paralisia econômica, “seja mais danoso do que a própria pandemia” - como se o fechamento de fábricas fosse mais grave do que a morte de milhares de cidadãos. Para Bolsonaro, cabe a seus desafortunados governados encontrar maneiras de sobreviver como puderem à pandemia, porque, se depender da disposição do presidente, o máximo que os milhões que correm o risco de ficar sem auxílio emergencial ouvirão de seu governo é: “E daí?”.

Editorial / O Estado de S.Paulo, O Estado de S.Paulo
24 de junho de 2020 | 03h06

Nenhum comentário: