domingo, 21 de junho de 2020

A lei e a liberdade

É fundamental diferenciar liberdade de expressão e ameaça ou incitação ao crime

No dia 18 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da ação relativa à legalidade e à constitucionalidade do Inquérito 4.781, instaurado em março de 2019 com o objetivo de investigar a existência de fake news, denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus ministros e familiares. Ao dar aval, por 10 votos a 1, à continuidade das investigações, o plenário da Corte reconheceu dois aspectos especialmente relevantes do Estado Democrático de Direito: existem no País leis que protegem a liberdade e as instituições e cabe ao Judiciário assegurar a efetividade dessas leis.

Em primeiro lugar, o plenário da Corte reconheceu a validade do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que atribui ao presidente da Corte competência para “velar pelas prerrogativas do Tribunal” (art. 13, I) e define que, “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro” (art. 43). Ou seja, o ministro Dias Toffoli agiu dentro da mais estrita legalidade ao determinar, em março do ano passado, a abertura de inquérito para investigar fake news e ameaças contra a Suprema Corte e seus membros.

Mais do que mero conjunto de regras operacionais, o Regimento Interno do Supremo é instrumento de proteção da autonomia e independência do Tribunal, ao prover os caminhos para fazer valer suas prerrogativas institucionais. Nesse sentido, ao reconhecer a plena validade do Regimento Interno, o Supremo não fez nada mais que assegurar a efetividade do princípio constitucional da separação dos Poderes. O Judiciário deve ter meios para se proteger de ataques e ameaças, seja qual for sua origem. Como lembrou o decano do Supremo, ministro Celso de Mello, não há razão para suspeitar da validade de regras do Regimento Interno cujo sentido é precisamente proteger a ordem democrática, o Estado Democrático de Direito e a própria instituição.

O julgamento da ação que questionava o inquérito das fake news foi também ocasião para reafirmar as liberdades e garantias constitucionais, diferenciando o que é liberdade de expressão e o que é ameaça ou incitação ao crime. Trata-se de um tema especialmente relevante nos tempos atuais. O presidente Bolsonaro e seus seguidores recorrem frequentemente a uma interpretação absolutamente equivocada das liberdades, como se estas autorizassem a agressão e a ameaça.

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.781, citou, entre outros exemplos, ameaça ocorrida depois que o STF decidiu mudar sua orientação a respeito do início do cumprimento da pena, exigindo o trânsito em julgado. “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”, disse uma advogada do Rio Grande do Sul em uma rede social. “Em nenhum lugar do mundo isso é liberdade de expressão. Isso é bandidagem, é criminalidade”, lembrou Alexandre de Moraes.

O relator do Inquérito 4.781 também citou ameaças encaminhadas pelo Ministério Público de São Paulo, por exemplo, a de um “detalhado plano” contra um dos ministros do Supremo, com menção a horário de viagens e a detalhes da rotina desse ministro em Brasília e São Paulo. Também foram mencionados ataques cibernéticos, um tinha até a planta do prédio da Corte “para tentativa contra os ministros”, além de vídeo com manuseio de artefato explosivo em frente à residência de um dos ministros do STF.

Não cabe omissão do Estado diante dessas ações criminosas. É preciso investigar e punir os autores, tanto os executores como os financiadores, desse tipo de conduta absolutamente contrária às liberdades e ao bom funcionamento das instituições. Nessa tarefa, é fundamental reconhecer que existem leis no País e que ninguém está acima delas. Por exemplo, o Código Penal pune, entre outras ações, a calúnia, a difamação e a injúria.

“A liberdade de expressão não respalda a alimentação do ódio, da intolerância e da desinformação. (...) Essas situações representam exercício abusivo desse direito”, disse o presidente do STF, ministro Dias Toffoli. O País anda bem quando não confunde liberdade com o seu antônimo.

Editorial / Notas & Informações, 
O Estado de S.Paulo, 21 de junho de 2020 | 03h00

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