segunda-feira, 13 de abril de 2020

'A batalha política do século será entre humanos e transumanos desumanos'

Em quarentena, filósofo italiano Franco Berardi escreve um 'Diário da psicodeflação' e afirma que a pandemia pode nos ajudar a sonhar o futuro não previsto por algoritmos

"Nosso psicológico vem experimentando uma “deflação”, no sentido de uma bola que está soltando ar, caindo no chão, flácida", disse a O GLOBO.

Essa “deflação”, segundo ele, é consequência da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, que obrigou aqueles que podem ficar em casa a desacelerar e esvaziar as ruas para manter a saúde.

Autor de livros como “Depois do futuro” e “Asfixia”, publicados no Brasil pela Ubu, Bifo participou de coletivos operários nos anos 1960 e sustenta que as novas tecnologias roubaram dos homens a possibilidade de sonhar futuros não previstos por algoritmos. Apenas a “reativação poética do corpo social” pode vencer a crise da imaginação, diz ele.

Em troca de e-mails com o GLOBO, Bifo afirmou que a recessão provocada pela epidemia pode inspirar arranjos sociais mais igualitários e sugeriu que a principal batalha política do novo século não será entre direita e esquerda, mas entre humanos e transumanos desumanos. Calma, nenhum ciborgue está vindo nos matar:

— “Transumanos desumanos” são os que exploram as novas tecnologias para criar um sistema tecnototalitário.

Quais serão os efeitos desta quarentena prolongada?

O capitalismo como nós o conhecemos vai desmoronar. Os economistas negam os indícios de uma longa estagnação, mas está cada vez mais claro que não existe crescimento infinito. Os recursos do planeta — e os recursos do nosso sistema nervoso — são limitados. Temos uma alternativa: construir um novo paradigma de produção baseado na frugalidade, na reciclagem, na distribuição igualitária dos recursos, na redução da jornada de trabalho, na adoção completa das tecnologias que substituem o trabalho humano e em renda básica para todos. Ou seremos submetidos a um capitalismo tecnototalitário extremamente desigual e violento.

E a política? A epidemia vai reconfigurar a disputa política?

O jogo político do passado, baseado na oposição direita-esquerda, acabou. Donald Trump, Jair Bolsonaro e Matteo Salvini (ex-primeiro-ministro italiano) e outros líderes patéticos não são um retorno da velha direita, mas uma reação à humilhação e à impotência da maioria da população. A pandemia está revelando a inaptidão desses líderes. Alguns tiveram a decência de seguir as instruções da ciência. O primeiro-ministro italiano (Giuseppe Conte), na minha opinião, agiu com responsabilidade, ainda que com certo atraso, e está fazendo o que os especialistas recomendam. Outros líderes, como o presidente do Brasil, falam besteiras, temerosos de que a epidemia os derrube — o que eu suspeito que vai acontecer logo. Repare em Boris Johnson (primeiro-ministro britânico), aquele palhaço arrogante, que estava negando os perigos da epidemia e se recusando a agir, até ele próprio pegar o vírus e precisar de tratamento médico. Creio que o jogo geopolítico do século será a batalha final entre humanos e transumanos desumanos. A não ser que o conoravírus destrua todos os transumanos desumanos, o que é possível.

A que você se refere quando diz “transumanos desumanos”? Ciborgues? Inteligência artificial?

Não acho que os ciborgues ou a inteligência artificial sejam os vilões. A tecnologia pode ser uma ferramenta para o progresso e o bem-estar social. Só a ciência pode nos salvar da pandemia. A salvação certamente não virá dos políticos ou do mercado. Quando falo “transumanos desumanos” me refiro aos que exploram as novas tecnologias para criar um sistema tecnototalitário de controle do nosso trabalho e das nossas vidas.

O que é “psicodeflação”?

Nos últimos 30 anos, nós fomos obrigados a acelerar, competir, vencer a guerra diária da precariedade. No livro “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”, Jonathan Crary (crítico de arte britânico) estima que dormíamos, em média, 10 horas por dia no começo do século passado, oito horas nos anos 1960 e seis horas e meia em 2000. Em “Sex by numbers” (Os números do sexo), David Spiegelhalter (estatístico britânico) afirma que, em média, fazíamos amor cinco vezes por semana nos anos 1990, quatro nos anos 2000 e 2,5 na década de 2010. A economia neoliberal somada à tecnologia tem nos levado à infelicidade. Assista ao último filme de Ken Loach (cineasta britânico), "Você não estava aqui". O filme descreve a vida precária de quem trabalha com entregas, a ansiedade infernal. Depois da ansiedade, vem a exaustão e as convulsões do corpo coletivo, expressa nos protestos do semestre passado em Hong Kong, Santiago, Barcelona, Paris, Quito, Beirute, etc, etc. Estamos exaustos, nervosos e deprimidos. O coronavírus e a quarentena diminuíram a tensão. Nosso psicológico vem experimentando uma “deflação”, no sentido de uma bola que está soltando ar, caindo no chão, flácida, e também no sentido econômico de diminuição da demanda.

Você diz que, além do coronavírus, há um psicovírus se espalhando. O que é esse psicovírus?

O conceito de vírus foi usado por William Burroughs (escritor americano, 1914-1997) para definir tudo o que induz a uma mutação, seja ela cultural, linguística ou social. Um terço da população mundial está em quarentena, está tudo paralisado, a produção, as interações sociais, o tráfego aéreo, a vida urbana. Para entender o que está acontecendo, temos que levar em conta a mutação psicológica que o vírus produziu e seus efeitos sociais no futuro próximo.

Com a pandemia, ficou mais difícil imaginar o futuro?

Por um lado, o futuro é tão sombrio que nos aterroriza só imaginar o que está por vir. Por outro lado, a pandemia reativou o imprevisível. Ontem, o poder tecnofinanceiro bloqueava toda possibilidade de agir e de imaginar algo diferente do que a repetição algorítmica. Com a pandemia, começou um jogo totalmente diferente. O imprevisível superou o inevitável.

Você prescreve um remédio para a crise da imaginação: a “reativação poética do corpo social”. O que isso quer dizer?

O que é um movimento social? É o agrupamento consciente de corpos no espaço público e o compartilhamento de afeto, solidariedade, prazer e sensibilidade estética. Reativação poética do corpo social é isto: um movimento que vence o medo e torna possível a emergência da esperança, de novos estilos de vida e maneiras de organizar o conhecimento e a tecnologia.

Ruan de Sousa Gabriel, O GLOBO
11/04/2020 - 04:30

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