sábado, 7 de março de 2020

Democratas têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas bolsonaristas

A estratégia do presidente se choca com a estabilidade institucional requerida pela doutrina da separação de Poderes e busca o tempo todo desviar a atenção da estagnação econômica, que permanece, apesar de uns poucos sinais de recuperação, e de suas supostas ligações com milicianos.

Em defesa da democracia representativa

Eleito com grande maioria de votos, o presidente Jair Bolsonaro tem a responsabilidade de pacificar a Nação, apesar de seus arroubos autoritários, pois, desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o Brasil está completamente dividido e polarizado política e ideologicamente, o que afeta as relações do governo com a sociedade. A legitimidade eleitoral conquistada nas eleições, porém, não o autoriza a abandonar a obrigação de governar para todos os brasileiros, e não apenas para os seus apoiadores. O próprio presidente assegurou ao País que faria isso ao jurar respeito à Constituição da República.

Em seu primeiro ano de mandato, no entanto, Bolsonaro alimentou muitas dúvidas sobre a racionalidade de suas ações e o compromisso de cumprir a Constituição. Recusando-se a formar uma maioria governativa no Congresso Nacional, como requerido pelo sistema político, não assumiu a liderança do partido que o elegeu nem coordenou as forças que o apoiam. Diante de novo protagonismo do Congresso, optou pela ausência de diálogo com as forças políticas e envolveu-se em seguidos conflitos com o Poder Legislativo, que, não obstante, tem aprovado suas propostas, a exemplo da reforma da Previdência e, agora, o seu veto no caso do orçamento impositivo. Quanto às questões tributária e administrativa, o governo hesita e não define os seus projetos.

Durante 2019, o presidente sustentou uma retórica de confronto com seus críticos e adversários, grosseira em muitos episódios, e ofensiva ao decoro do cargo pelo grau de desrespeito a importantes segmentos da sociedade, como as mulheres, os negros e os indígenas, cujos direitos ameaçou ou tentou retirar em alguns casos. Quis ainda controlar a liberdade de ação da sociedade civil e, adotando uma política ambientalista desastrosa, voltada para desconstruir o que havia sido feito em governos anteriores, atritou-se com chefes de Estado estrangeiros focados na preservação da Amazônia, esvaziando o papel do Brasil nessa área.

A estratégia do presidente se choca com a estabilidade institucional requerida pela doutrina da separação de Poderes e busca o tempo todo desviar a atenção da estagnação econômica, que permanece, apesar de uns poucos sinais de recuperação, e de suas supostas ligações com milicianos. Ademais, hostilizou governadores de oposição com acusações descabidas e desafiou a maioria deles a diminuir impostos sem, contudo, dialogar ou apresentar propostas consistentes a esse respeito. Nem a gravíssima crise de segurança do Ceará fez o presidente desautorizar o desrespeito às leis por policiais militares revoltosos.

Mas mais grave é o seu indisfarçável apoio à manifestação convocada por bolsonaristas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Agredindo jornalistas como Vera Magalhães pelo desmentido disso, como tinha feito com Patrícia Campos Mello, Jair Bolsonaro tenta se livrar da responsabilidade por ações que juristas e políticos consideram que tipificam crime de responsabilidade, mas sabe perfeitamente que manifestações pedindo o fechamento do Parlamento e da Corte Suprema atentam contra a democracia - e, como cumpridor da Constituição, Bolsonaro deveria desautorizá-las.

Trata-se de uma sinalização perigosa de descompromisso com a democracia, que precisa ter resposta firme da sociedade brasileira. A situação abre uma extraordinária janela de oportunidade para que os defensores da democracia representativa mobilizem as suas bases, por meio de seus partidos, associações, sindicatos e grupos religiosos, para reafirmar os valores fundamentais da democracia - a liberdade, a igualdade política e o império da lei -, mas também para debater as distorções das instituições de representação, que causam desconfiança e rejeição popular, especialmente os partidos e o Parlamento.

Nesse sentido, a inconsistência programática dos partidos, a sua falta de democracia interna, o abuso no uso de recursos para campanhas eleitorais, a desconexão entre representados e representantes e, principalmente, o sentimentos de muitos eleitores de não serem relevantes para instituições como o Congresso precisam ser enfrentados, não podem ser deixados apenas como argumentos dos inimigos da democracia.

O desafio é claro. Empresários, formadores de opinião, dirigentes partidários, chefes religiosos, sindicalistas, intelectuais - e, especialmente, os que querem assumir o papel de líderes da Nação - têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas dos bolsonaristas, apoiadas pelo governo, contra a democracia representativa e a liberdade. A melhor defesa do regime é enfrentar suas crises para aperfeiçoá-lo, mobilizar a população e pôr as propostas necessárias de reforma em debate. Os democratas precisam fazer isso antes que seja tarde demais.

Este artigo de José Álvaro Moisés foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07 de março de 2020. José Álvaro Moisés é Professor Sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). É autor do livro "Crises da Democracia - O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos" (2019).

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