terça-feira, 3 de março de 2020

Bolsonaro não pode tomar decisões apenas com o intuito de prejudicar adversários

Governo particular

A greve dos policiais militares (PMs) do Ceará terminou, mas seus muitos e graves efeitos ainda se farão sentir por algum tempo. Além de revelar a extensão da organização sindical dos policiais, impedidos por lei de fazer greve, o movimento indicou uma forte contaminação política, que torna secundária a reivindicação salarial.

Há políticos oportunistas direta ou indiretamente envolvidos na iniciativa paredista e principalmente na exploração de suas consequências mais danosas para a imagem dos governadores cujos Estados foram afetados. Os policiais, nesses Estados, se transformaram em instrumento de pressão de uma oposição que nada tem de democrática – ao contrário, mal esconde seu perfil autoritário. Como os policiais grevistas foram bem-sucedidos em espalhar o desassossego público e encurralar os governadores, deve-se esperar que novas paralisações ilegais de agentes armados se repitam Brasil afora.

A propósito do caráter político que o movimento grevista da PM começa a adquirir, chamou a atenção o comportamento do governo federal no caso da paralisação no Ceará. Como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro passou toda a sua vida como deputado a cortejar os policiais militares. Na sua campanha à Presidência, chegou a defender os PMs amotinados que levaram o caos ao Espírito Santo. Sendo assim, não surpreende o tratamento brando que o governo federal dedicou aos policiais grevistas do Ceará, a ponto de o ministro da Justiça, Sérgio Moro, ter dito que estava tudo “sob controle” no Estado no momento em que dezenas de pessoas eram mortas no surto homicida que se seguiu ao aquartelamento da PM. Também não surpreende que Moro tenha dito que os policiais “não podem ser tratados de nenhuma maneira como criminosos”, muito embora os grevistas – além de terem feito uma paralisação ilegal – tenham baleado um senador da República, aterrorizado comerciantes e tomado e incendiado veículos da polícia, entre outras barbaridades.

Ou seja, o governo parece mais preocupado em manter-se afinado com a base eleitoral do presidente, muitas vezes em detrimento da ordem e da lei – e isso fica ainda mais evidente em Estados governados por políticos de esquerda. O caso do Ceará é ilustrativo.

No auge da crise, chamou a atenção a disposição do presidente Bolsonaro de não renovar o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que permitiu a presença de militares do Exército no Ceará durante a greve da PM. “A GLO não é para ficar eternamente atendendo um ou mais governadores”, disse Bolsonaro, em referência ao pedido de renovação da GLO feito pelo governador cearense, Camilo Santana. O fato de Santana ser do PT não parece fortuito: Bolsonaro elegeu-se prometendo “fuzilar a petralhada”, e nada mais natural que, nesses termos nada democráticos, o presidente resista a atender aos pleitos de petistas – especialmente os desesperados.

O presidente da República, conforme o artigo 37 da Constituição, deve obedecer ao princípio da impessoalidade ao governar. Não pode tomar decisões com o intuito de prejudicar adversários, ainda mais quando vidas de cidadãos estão em jogo. Bolsonaro só voltou atrás na sua intenção de prejudicar o governo petista do Ceará por pressão de vários outros governadores, de diversos partidos.

Não foi a primeira vez que Bolsonaro agiu segundo razões e impulsos pessoais. Ele já disse que pretendia “dar um filé mignon” para seu filho Eduardo Bolsonaro, em referência à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos; um fiscal do Ibama que multara Bolsonaro quando este ainda era deputado foi exonerado; e o presidente ameaçou usar seu poder para sufocar economicamente jornais críticos a seu governo. A lista é longa.

Está claro que Bolsonaro não sabe a diferença entre governar o País e resolver pendengas particulares. Esse comportamento ganha contornos muito graves quando prejudica Estados que deram o azar de serem governados por políticos que o presidente considera inimigos.

Notas & Informações, publicado originalmente na edição de  O Estado de S.Paulo, em 03 de março de 2020 | 03h00.

Nenhum comentário: