sábado, 9 de julho de 2011

Billy

Atendo o telefone quase meia-noite. É o Hélio indo direto ao assunto.

Acabara de receber um telefonema do seu filho nos Estados Unidos pedindo para ajudar o pai de um amigo que estava preso numa carceragem da Policia Federal no Rio de Janeiro.

Os rapazes tocavam música brasileira numa banda mais por saudades do que por dinheiro ou sucesso. Estavam lá estudando e nem era música.

O pai do amigo do filho do Hélio era o Billy Blanco. E o Hélio que me telefona não o via há anos. Eu o conheci numa roda metida a boêmia numa noite de lua em S. Luis. Tocando violão.

Na Turma de que eu fazia parte no Tribunal Federal de Recursos seria julgado o "habeas corpus" do Billy. O relator era o Jacy, um juiz federal convocado.

Levantei a trajetória do Billy, sua importância para a cultura popular brasileira, seus clássicos na música, a sensibilidade poética de suas letras refletindo o cotidiano carioca, procurei resumir tudo como se fosse um breve memorial e fui ao Jacy antecipar o meu voto.

No mérito, não havia razão para a prisão preventiva. Afinal, era o Billy Blanco. Com que poder haveria de atrapalhar as investigações, coagir testemunhas, comprometer a ordem pública ou fugir do distrito da acusação? Aquela prisão era uma violência.

Com muita pena me desfiz de um long-play do Billy com a faixa do Estatuto da Gafieira e dei-o ao Jacy chamando-lhe a atenção para aqueles versos.

Um homem com a visão poética e compromisso social como o Billy, que escreve um Estatuto da Gafieira, não merece isso do Estado. Achava que aquilo poderia ser um grande argumento. O silêncio frio conquanto respeitoso do Jacy me polvilhou de dúvidas.

É cultural no Brasil as pessoas contratarem advogado mas achando que os Juízes só fazem justiça por acaso. Daí se danam a pedir nas paralelas. Muitas vezes são os próprios advogados que dão a dica sugerindo nomes que as partes, coitadas, devem procurar pedindo.

Não sei se o caso do Billy foi um desses.

Aconteceu de o Hélio, que não era advogado, ter liberdade pessoal comigo para me repassar a solidariedade de seu filho a um amigo cujo pai de saúde fraca se achava preso sem denúncia formal numa carceragem federal no Rio de Janeiro.

Não iria me envolver se, sendo um dos julgadores, não tivesse antes que me inteirar.

O ademais da questão estava em que eu já conhecendo o Billy através da sua obra e o monumento vivo que ele representava para a cultura popular brasileira sabia, antemão, que era um exagero aquela prisão provisória.

("Quem está fora não entra / quem está dentro não sai / mas a orquestra sempre toma providencia / tocando alto pra policia não manjar / e nessa altura um piston tira surdina / e põe as coisas no lugar..."

("Não fala com pobre / não dá a mão a preto / não carrega embrulho / por que tanta banca, doutor? / prá que esse orgulho? (...) O enfarte lhe pega, doutor/ e acaba essa banca / (...) Na horizontal somos iguais...)

O Billy que nasceu no Pará era arquiteto aposentado do Banco da Amazônia onde tinha uma conta corrente para receber seus proventos.

Deu-se que alguém no banco passou a usar aquela conta fazendo depósitos e movimentações atípicas. Quando ele percebeu e pediu para esclarecer, o alguém lhe falou que era uma operação pela qual ele, Billy, seria remunerado. Achou meio esquisito mais foi deixando.

Um dia a Policia Federal descobre grandes falcatruas no Banco, já naquele tempo, anos 80, surgindo o Billy como laranja de um dos diretores. Essa era a suspeita. Não havia apuração conclusiva de nada. E para daí lhe decretarem a prisão preventiva, foi um pequeno passo, um absurdo.

O Billy, figura nacionalmente conhecida, com profissão definida, residência fixa, bons antecedentes, e com a saúde fragilizada, não poderia ser confundido com esses marginais de alta periculosidade, que podem quase tudo.

Na tarde do julgamento, a grande surpresa.

O Jacy não só negou o "habeas corpus" como ainda, a propósito das boas referencias que eu havia lhe feito, pessoalmente, sobre a obra do Billy, registrou no voto que o fato de o réu ser um intelectual, musico, poeta e arquiteto de profissão, isso mais pesava contra, eis que sendo isso tudo mais noção deveria ter da gravidade dos fatos em que estava envolvido. Assim e assado.

O Milton, outro juiz federal convocado, pediu vistas. E na volta, semana seguinte, trouxe um voto divergente que foi seguido pelos demais.

E assim, revogada a prisão preventiva, o Billy foi solto. Muito mais tarde foi absolvido. Ontem ele morreu num acidente vascular cerebral no Rio de Janeiro, aos 87 anos.

O Hélio pai do rapaz amigo do filho do Billy com quem tocava numa banda nos Estados Unidos mais por saudades do que por dinheiro ou sucesso era o Hélio Beltrão, um dos homens públicos mais íntegros que eu tive a sorte de ser amigo no Brasil.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que história linda. Bela narrartiva!
Raros os que escrevem tão bem quanto o sr. ministro, parabéns!