sábado, 22 de janeiro de 2011

Caramelo

A terra barrenta encharcada, sepulturas enfileiradas, cruzes improvisadas, a chuva caindo, caindo, mas ele não arreda, de tão certo parece estar de que é este mesmo o seu ponto de vigília.

As pessoas passam apressadas querendo de qualquer jeito se salvar, ninguém nunca viu isto, os morros despencando arvores, quebrando casas, arrastando pedras enormes, as águas virando uma gororoba estranha como se derramada dos caldeirões do diabo, correndo em velocidade espantosa, levando gentes, bichos e automóveis no rumo de algum lugar onde não se sabe o fim.

Isso tudo pode lhe parecer estranho, seus olhos nunca viram coisas assim, o mundo em derredor se desorganizando, as pessoas no desespero sem tempo, correndo atrás da esperança não se desgarrando dos seus anjos da guarda, crentes em que Deus, ele sim, só Ele pode comparecer com a solução final.

Para muitos o que se cumpre nesse sofrer geral é a vontade de Deus, é São Pedro por Sua ordem abrindo as torneiras do céu para fazer chover onde não há chuva.

Para outros é o diabo por seus secretários desviando as águas para que elas despenquem com essa violência inédita exatamente sobre lugares como este onde a indiferença e a omissão, enfeitiçadas pelos corretores do inferno, costumam investir no mercado futuro do caos.

Esta fileira de sepulturas se manteria anônima quase imperceptível até sumir, quem sabe, sob o temporal das próximas horas, não fosse esta teimosia deste cão arreado em suas patas ao lado da cruz à espera de sua dona.

Viveram juntas as mais diversas travessias da vida, ele a protegeu, ela o alimentou, eles dividiram luzes e sombras, compartilharam abrigos e medos, viveram uma amizade.

Não faz muito vinham juntos na fuga da tempestade sob o império do pânico querendo escapar. Ela caiu, ele parou. Alguém depois cavou um buraco e a espichou dentro. Tapou o buraco, fincou uma cruz improvisada, e ele então começou a sua vigília.

Cão é bicho que fareja longe e daí a certeza de que sua dona, sua amiga de uma vida inteira, estava ali debaixo daqueles sete palmos que nem de terra encharcada se poderia chamar, eram sete palmos de um buraco cavado na lama mesmo.

A fotografia do cão paciente, o olhar vigilante, apoiado sobre as patas no chão enlameado ao lado da cruz na sepultura de sua dona, saiu na primeira pagina dos jornais e correu o mundo.

Mãos com muita força o retiraram do seu posto de vigília naquele pequeno cemitério surgido ao acaso. Levaram-no a um centro de adoções na cidade e por conta da fama foi mais quem o quis adotar. A mulher que o adotou levando-o para casa e cercando-o de carinho passou a lhe chamar de Caramelo. Consta que nada lhe faltou, nem vacinas, nem remédios, nem bifinhos, nem ração das boas.

Todos da rua queriam conhecer o Caramelo, o cão que exibiu fidelidade e paciência na espera sem conta de tempo por sua dona, a sua amiga de fé que nunca mais voltaria.

Caramelo não quis saber das novas atenções e fugiu dos cuidados de sua nova dona. Ontem ele foi visto vagueando, completamente desnorteado por uma rua da cidade. Como se ainda pudesse se reencontrar com a sua dona.

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