quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Corrientes

Um pouco antes da chegada do sol, a avenida amanhece os cansaços das vésperas – crianças tenras ainda dormem nas calçadas entre cães e mendigos, que daqui a pouco se espalharão pelas esquinas, crianças nos colos, mãos de mães instigando caridades.

Tudo agora se conforma e se basta na calçada ainda quase noturna entre a promiscuidade dos leitos improvisados nas caixas de papelão e a indiferença dos entes que se cruzam e passam.

Nas esquinas, olhando os jarros vazios dependurados nos quiosques não se vê a hora da chegada das flores.

Uma mulher de olheiras fundas, a maquilagem se derretendo que nem a madrugada se esfiapando nestes prenúncios de dia, nesse calor que faz nesta manhã bem cedo, uma mulher gordona e alta parecendo mal se agüentar nos saltos altos, esbafora a fumaça do seu cigarro e atira um sorriso que é solidão pura.

Adiante, em passos lentos, um velho e o seu cachorro dominam a paz da calçada inteira do quarteirão. Há um descompasso entre o homem e o bicho, o velho denota cansaço e o cão tristeza.

Nada dói mais na consciência política que uma criança triste, crianças sem afeto, crianças ignoradas, crianças famintas e tristes.

De novo o alerta, já passa da hora dessa meninada começar a contar com a gente!

Uma força celeste está apenando as mulheres que fumam e elas se olham no espelho e nem percebem o quanto a nicotina as enfeia.

Saio contando na avenida quantos homens e quantas mulheres caminham fumando, e elas são maioria.

Essas mulheres não têm noção do quanto restarão feias e com a voz grossa de homem, o rosto pelancando, se não largarem do cigarro, o quanto antes.

O dia chegando descerra as portas das cafeterias e esparrama as cores nas bancas de revistas, escancara as vitrinas das boutiques.

São muito engraçadas as três manequins com roupas para o réveillon, as três de óculos escuros, o mesmo tipo de óculos, parecendo esses seguranças inseguros que escondem os olhos para ver se assim mascarados intimidam.

Segurança não existe para intimidar. Sua função é passar confiança, segurar o clima, garantir a harmonia e também, é claro, estar pronta para reprimir com inteligencia as eventuais desinteligencias que descambem na transgressão.

As buzinas dos automóveis, o barulho dos motores dos ônibus, mais as ensurdecedoras palavras de ordem de mais um movimento reivindicatório que intenta e consegue obstruir o transito na avenida, isso tudo vai servindo de labaredas para a queimação do que ainda vai restar como dia, deste último dia de mais um do ano que passa.

A rua que cruza a avenida fazendo a próxima esquina chama-se Tenente General Juan Domingo Perón.

Não se pode parar a trajetória de um Povo, congelar a sua história no tempo. Cada momento na história é ele só, mas sequencial. É como na vida das pessoas, é sequencial.

A diferença é que um Povo enquanto Nação não morre. E porque é imortal não pode ficar atrelado à geleira que congela o passado, que é apenas a ponta do fio pelo qual há de passar a lógica do futuro.

Sempre que venho por aqui reservo horas para observações e reflexões querendo compreender essas correntes que ainda aprisionam um Povo tão intensamente ao passado.

É véspera de Ano Novo!

Vamos orar pedindo a Deus para que não nos percamos na falta de esperanças e para que as esperanças nos inspirem nestas lutas do presente em direção a um futuro bem próximo, mais animado, mais confiante e bem melhor.

Feliz Ano Novo!

Um comentário:

Jackson Rubem disse...

Li com emoção seu texto CORRIENTES e esta frase foi bastante marcante:
"Nada dói mais na consciência política que uma criança triste, crianças sem afeto, crianças ignoradas, crianças famintas e tristes."
Parabéns!