sexta-feira, 19 de abril de 2024

‘É absurdo que grandes fortunas escapem de tributos’, diz economista que propõe taxar bilionários

Francês Gabriel Zucman quer tributar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão. Ideia foi levada ao G20 e mira 3 mil pessoas no mundo, com potencial de arrecadação de US$ 250 bilhões por ano

Gabriel Zucma, economista francês que propõe taxar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão — (Foto: Nelson ALMEIDA / AFP)

Tributar bilionários e grandes multinacionais é tarefa moral, econômica e política, na avaliação do diretor do Observatório Fiscal Europeu, Gabriel Zucman. Apontado como “guru tributário" do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o economista francês de 37 anos se desvencilha da alcunha por considerar-se jovem demais.

Em entrevista ao GLOBO, ele defende não apenas a criação de um imposto mínimo de 2% sobre a fortuna de pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão, mas também o aumento da alíquota aplicada às multinacionais, de 15% para 20%. Juntas, segundo ele, as duas medidas arrecadariam pelo menos US$ 500 bilhões ao ano. Suas propostas foram apresentadas aos pares de Haddad no G20.

Em fevereiro, a convite do Ministério da Fazenda, você apresentou aos G20 a proposta de tributar as grandes riquezas. Quem são elas?

O ponto de partida são os super-ricos, pessoas que têm US$ 1 bilhão, sobre as quais incidem alíquotas de impostos significativamente mais baixas do que as que pagam outras categorias sociais. Uma série de estudos confirma este fato em vários países.

Por que isso ocorre?

Os ultrarricos têm tudo planejado. Quando você é extremamente rico, é muito fácil estruturar seu patrimônio de forma que gere pouco ou até nenhum lucro tributável. A noção de rendimento não está muito bem definida em se tratando dos muito ricos. É precisamente assim que conseguem evitar o imposto sobre o rendimento.

Em 2021, a mídia americana revelou que, por vários anos, bilionários como Jeff Bezos (dono da Amazon) e Elon Musk (dono de Tesla e X) pagaram zero ou quase zero de Imposto de Renda. Pesquisas acadêmicas mostram que isso vai muito além de casos isolados. É uma realidade global.

Como é sua proposta?

Consiste em criar um imposto mínimo sobre os ultrarricos igual a 2% de sua fortuna por ano. Se um bilionário paga hoje muito Imposto de Renda, e isso existe, não teria de pagar nada mais. Mas, se alguém como Bezos e Musk paga zero, teria de pagar um tributo igual a 2% de sua fortuna. Se seu patrimônio for de US$ 100 bilhões, recolheria US$ 2 bilhões em imposto.

Vivian Oswald, jornalista, originalmente, de Brasília - DF para O Globo,em 19.04.24

Como ser imortal

Os filósofos da escola estóica ou cínica já nos deixaram a fórmula de uma eternidade andando pela casa sem passar pela faca. Eles nunca pensaram no futuro

Estátua do Imperador Marco Aurélio na Gliptoteca Ny Carlsberg em Copenhague. (Getty)

A imortalidade está agora ao alcance de qualquer pessoa. Não se trata dos avanços da ciência médica que permitirão que os órgãos e tecidos do corpo se renovem como numa oficina automóvel. Em breve você poderá guardar na geladeira vários corações, fígados, estômagos e pâncreas sobressalentes, embrulhados em papel albal, para quando precisar substituí-los pelos velhos e desgastados. 

Na realidade, será possível ter uma réplica completa do seu corpo de 35 anos, incluindo o cérebro com todos os segredos da memória armazenados num armazém graças à inteligência artificial. Morrer ou continuar neste mundo será um jogo ao capricho do usuário. Se você ficar entediado, você vai embora, só isso. 

Só que os ditadores poderão permanecer no poder indefinidamente e os idiotas continuarão brincando, os ladrões roubando, os assassinos matando, os crentes rezando, os poetas sonhando, os atores dançando, as crianças chorando, os políticos mentindo. 

Esta imortalidade clínica será extremamente rude e, como o mundo continuará a não fazer sentido, os sábios irão por vontade própria para o além a bordo do barco de Caronte, numa viagem noturna em que não há farol. Pouco importa, porque os filósofos da escola estóica ou cínica já nos deixaram a fórmula para sermos imortais andando pela casa sem ter que passar por cirurgia. Seu experimento foi muito simples.

 Eles nunca pensaram no futuro. Eles sabiam que o tempo era apenas um horizonte que poderiam adaptar aos seus sonhos. Eles dividiram o tempo em dias, horas, minutos e segundos. Na hora de viver plenamente, só deram importância àqueles últimos segundos que fluem pelos sentidos e através deles desceram àquela profundidade onde não existe mais um antes ou um depois, mas sim o nó de todos os prazeres que em seu o tempo final permitiu-lhes ser puros, felizes e incontaminados. 

De resto, acreditavam, tal como Marco Aurélio, que a vida era apenas uma opinião. Enquanto você estiver vivo, você será imortal.

Manuel Vicente, o autor deste artigo, éescritor e jornalista. Vencedor, entre outros, dos prêmios de romance Alfaguara e Nadal. Como jornalista começou no jornal 'Madrid' e nas revistas 'Hermano Lobo' e 'Triunfo'. Ingressou no EL PAÍS como colunista parlamentar. Desde então publicou artigos, crônicas de viagens, reportagens e daguerreótipos de diversas personalidades. Publicado no EL PAÍS, de Madrid  - Espanha, em 25.02.24.

Liturgia democrática

É um avanço ver o diálogo civilizado entre o ministro da Justiça e a bancada da bala no Congresso

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi nesta semana a uma audiência da Comissão de Segurança Pública da Câmara e de lá saiu com um triunfo imprescindível para um País cindido e polarizado: a retomada da liturgia da democracia, aquela segundo a qual se assenta o princípio elementar de convivência respeitosa entre contrários, a busca de consensos e a relação harmoniosa entre representantes de dois Poderes. A comissão é um espaço de maioria oposicionista e concentrada na chamada bancada da bala, e parlamentares bolsonaristas não hesitaram em provocar o ministro e demarcar suas diferenças, sobretudo na política de armas. Mas nem a oposição nem o convidado ficaram presos nas armadilhas das discordâncias, como se inimigos fossem.

Lewandowski tratou os parlamentares não como irresponsáveis armamentistas, mas como lideranças experientes no assunto. Sugeriu canal de diálogo em torno de pontos pleiteados pela bancada, como o direito adquirido de clubes de tiro fechados por decreto. Deixou alternativas em aberto para acomodar demandas e criticou a inflexibilidade em relação à oposição – recomendação a ser ouvida por muitos dos seus colegas ministros, do PT e do próprio Palácio do Planalto, que costumam enxergar oposicionistas ou como potenciais cooptados ou, repetindo os métodos do ex-presidente Jair Bolsonaro, como inimigos a serem aniquilados. Em contrapartida, foi elogiado. O próprio presidente do colegiado, Alberto Fraga (PL-DF), prometeu no início da sessão que o ministro não seria destratado. E não foi.

A demonstração de civilidade na comissão é mais notável quando se observa o atual panorama das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário e sua espiral descendente de revanches e conflitos (ver o editorial Freios e contrapesos em frangalhos, 18/4/2024). E mais ainda quando se recorda das diatribes produzidas pelo antecessor de Lewandowski. Quem não se lembra das ruidosas polêmicas protagonizadas por Flávio Dino? À época, substituía a liturgia do cargo pela vocação exibicionista, opinava histrionicamente sobre tudo e sobre todos, fustigava adversários, fazia prejulgamentos sobre casos e se convertia numa espécie de influencer militante, mais preocupado em atingir corações e memes nas redes sociais do que zelar pelas funções do cargo.

A mudança não ocorre sem riscos. Há um equilíbrio tênue a buscar, sobretudo num terreno onde não faltam convicções enraizadas. O próprio ministro deu um exemplo disso, o veto ao artigo da nova Lei de Execuções Penais que proibia saídas temporárias de presos por razões familiares. Por outro lado, a bancada da bala claramente pressionou Lewandowski contra uma diretora da pasta que ajudou a elaborar o decreto que reviu a política de controle de armas. A resposta do ministro deu sinais de que pode rifá-la.

Já se trata, porém, de um avanço extraordinário poder assistir a uma audiência do ministro da Justiça sem parecer que estamos diante de um teatro de guerra ou de animadores de auditório. A liturgia da democracia dá mais trabalho, mas é o melhor caminho para aperfeiçoar ideias e reconstruir o País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.04.24

Poderes estão fora de órbita no Brasil

Judiciário legisla, Congresso sequestra Orçamento, Executivo ataca equilíbrio fiscal; urge corrigir essa anomalia

Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), criticou o ministro responsável pela articulação política do governo, Alexandre Padilha (PT), e teve um primo demitido de uma prebenda federal. O Planalto dobrou a aposta no ministro, e o centrão trama maneiras de retaliar o Executivo.

Lira também se incomodou com mais uma provável reviravolta em entendimentos do Supremo Tribunal Federal —que mudou de ideia e se inclina a ampliar sua alçada sobre autoridades com foro especial— e ameaçou criar uma CPI para investigar supostos abusos em decisões de ministros da corte.

Reagindo a uma investida do STF em temas legislativos, o Senado aprovou emenda à Constituição que, ao estilo das nações mais regressistas do planeta, criminaliza o porte e a posse de drogas.

Um grupo de juízes da corte manifestou sua preocupação com a saliência do Congresso num jantar em "petit comité" com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Um dos comensais, Alexandre de Moraes, entabulou depois conversas diretas com Lira e o chefe do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Como costuma ocorrer em Brasília, o que inicialmente parece configurar uma "crise entre os Poderes" caminha depressa para a prática secular do acordão entre poderosos. O objetivo, no fim das contas, não é mais que acomodar interesses mesquinhos.

Passa como se fosse virtude a doença crônica que acomete a tríade dos Poderes no Brasil. Não é normal que juízes da corte suprema dediquem o seu tempo a tricotagens com autoridades que nomeiam, controlam e aprovam magistrados constitucionais.

Mas esses convescotes são frequentes, sintoma epidérmico da falta de respeito às fronteiras institucionais em Brasília.

Nessa geleia geral em que se confundem os papéis, não constitui surpresa que juízes se intrometam corriqueiramente em assuntos do Legislativo e do Executivo, como ocorre agora no julgamento sobre descriminalização dos usuários de maconha.

Também o Congresso conspurca fronteiras. Absorveu ao longo dos últimos anos a prerrogativa, contraditória com o presidencialismo, de distribuir, sob critérios paroquiais e eleitoreiros, uma montanha de recursos públicos sob a forma de emendas parlamentares que distorcem o jogo político.

Já o Executivo abriu mão de ser o fiador do equilíbrio orçamentário de longo prazo e joga lenha na fornalha da gastança. O equilíbrio orçamentário caminha ao lado da estabilidade política.

Os Poderes estão fora de órbita no Brasil. Como corrigir essa anomalia deveria ser uma prioridade da agenda nacional.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 18.04.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Reação a afastamentos de juízes mostra insatisfação de Barroso com revanche a Lava Jato

Presidente do STF se indispõe com revisionismos de ações de combate à corrupção

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso - Rosinei Coutinho - 29.fev.24/SCO/STF

O julgamento que revogou o afastamento da juíza Gabriela Hardt expôs publicamente uma insatisfação que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, vem cultivando sobre as tentativas de punição a agentes públicos que atuaram na Lava Jato.

O episódio também brecou, ao menos temporariamente, avanços de um grupo de integrantes de tribunais superiores contra magistrados e procuradores que trabalharam em ações da operação.

Barroso foi um dos principais defensores da Lava Jato no Supremo no auge da operação.

Nos últimos anos, com a pauta do STF mais voltada para a defesa do tribunal contra os ataques de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o ministro reduziu as manifestações sobre o tema e se aproximou de Gilmar Mendes, decano da corte e principal crítico da Lava Jato.

No entanto, Barroso passou a mostrar, nos últimos meses, incômodo a interlocutores a respeito de decisões que fizeram revisionismo das ações de combate à corrupção da última década.

Entre o fim do ano passado e o início desse ano, ele ouviu críticas de uma ala de ministros do STF a respeito das decisões de Dias Toffoli que suspenderam o pagamento de multas das leniências firmadas por empresas como a J&F e Odebrecht.

A preocupação deles era, sobretudo, com a imagem de um Supremo condescendente com atos de corrupção e de desvio de dinheiro público, tanto no Brasil como no exterior.

A questão acabou resolvida internamente no STF com a criação, pelo ministro André Mendonça, de uma mesa de conciliação entre órgãos públicos e empresas que firmaram esses acordos.

Mas, no caso do afastamento de Gabriela Hardt pelo corregedor do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Luís Felipe Salomão, Barroso teve que resolver a questão em uma sessão pública.

Salomão, que também é ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), tem uma posição mais alinhada às de Gilmar Mendes e Dias Toffoli contra a Lava Jato.

Desde o ano passado, o corregedor decidiu iniciar uma inspeção nos gabinetes da Justiça Federal do Paraná e do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) que atuaram em processos da Lava Jato, em busca de suspeitas de irregularidades cometidas pela operação.

Na segunda-feira (15), ele afastou, em decisão monocrática (individual), Hardt, que foi a substituta de Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba, Danilo Pereira Júnior, atual titular da vara da Lava Jato, e dois integrantes do TRF-4 que atuaram em ações da operação.

Ao decidir dessa forma, Salomão forçou Barroso a pautar o julgamento desses magistrados na sessão do CNJ desta terça. O presidente do Supremo também preside o conselho.

A iniciativa do corregedor irritou Barroso, que votou contra o afastamento e se manifestou de forma ríspida, afirmando que nem os ministros do STF têm atuado dessa forma hoje em dia.

"Nada justifica que essa medida fosse tomada monocraticamente", disse Barroso, em seu voto.

"Considero que a medida foi ilegítima, arbitrária e desnecessária, [com] o afastamento dos juízes por decisão monocrática, sem deliberação da maioria [do CNJ], e sem nenhuma urgência que não pudesse aguardar 24 horas para ser submetida a esse plenário."

"Sem querer cultivar a ironia, entendo que tal decisão contrariou frontalmente com decisão do STF", afirmou Barroso.

Apesar de ter votado para reverter os afastamentos, o presidente do CNJ pediu vista (mais tempo para análise) sobre a possibilidade de abertura de abertura de processo disciplinar contra os quatro magistrados.

Mas antecipou que, a princípio, não viu irregularidade na conduta de nenhum dos juízes.

"Essa moça não tinha absolutamente nenhuma mácula sobre a carreira dela para ser sumariamente afastada", disse, ao mencionar Gabriela Hardt.

O plenário do CNJ, composto por 15 conselheiros, acabou revogando o afastamento de Hardt e Danilo, mas manteve os dois membros do TRF-4 fora das atividades.

O resultado no conselho foi apertado. Dos 15 conselheiros, votaram para derrubar o afastamento de Hardt e de Danilo 8 deles.

A divisão de influências foi clara: votaram para manter todos os afastamentos o próprio Salomão, os dois indicados da OAB, os dois indicados da Câmara dos Deputados e do Senado e as duas indicadas do STJ (tribunal ao qual Salomão é integrante).

Advogados e a maioria dos parlamentares sempre foram críticos à Lava Jato

Do outro lado, votaram para revogar o afastamento os dois indicados do STF, os dois indicados do TST e o indicado que representa o Ministério Público Federal, além de Barroso.

Dois conselheiros votaram de forma dividida: um ministro do TST, Caputo Bastos, e um membro de Ministério Público Estadual, João Paulo Schoucair, se manifestaram a favor da revogação dos afastamentos de Hardt e de Danilo, mas não em relação aos outros dois magistrados.

Um dos motivos para Salomão ter afastado Hardt foi por ela ter validado, em 2019, um acordo entre a Petrobras e o Ministério Público Federal que criaria uma fundação privada, sob coordenação da Procuradoria e com participação da sociedade civil, com valores oriundos dos acordos de delação e leniência. O STF acabou suspendendo a criação dessa fundação.

Em relação aos demais juízes, Salomão afastou, sobretudo, devido à decisão do TRF-4 de determinar a suspeição de Eduardo Appio, juiz crítico à Lava Jato que passou meses à frente da 13ª Vara de Curitiba e revisou atos dos seus antecessores no posto. O juiz Danilo Pereira Júnior estava atuando como substituto no TRF-4.

O ministro afirmou que os magistrados desobedeceram ordem de Dias Toffoli ao decidir pela suspeição.

José Marques, o autor desta matéria, é jornalista. Publicada originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em  18.04.24

O acusado Donald Trump

Justiça quebra a aura de intocabilidade do ex-presidente ao colocá-lo na magistratura como mais um cidadão

Donald Trump comparece esta quinta-feira perante o juiz do tribunal criminal de Nova Iorque. (JABIN BOTSFORD / PISCINA (EFE)

Desde segunda-feira passada, durante algumas horas por dia, Donald Trump nada mais é do que um réu que tem de se sentar num tribunal de Manhattan para ouvir o desenvolvimento do caso contra ele por contabilidade falsa e financiamento ilegal de campanha. Esta imagem durará entre mais seis e oito semanas, em quatro sessões por semana. Sentado naquela sala, o antigo presidente e candidato in pectore do Partido Republicano às eleições de Novembro é simplesmente um cidadão à mercê do sistema de justiça, sujeito à rigidez do processo judicial como qualquer outro. Assim, pela primeira vez, um momento transcendental de sobriedade institucional obrigatória foi alcançado dentro do turbilhão histérico que envolve tudo o que o magnata faz e diz.

O caso decorre do pagamento a uma atriz pornográfica, Stormy Daniels , para silenciar uma suposta relação sexual com Trump poucos dias antes das eleições de 2016. O escândalo não se materializou judicialmente até que o procurador Alvin Bragg, um democrata, lançou uma acusação histórica há um ano e acabou com a timidez do sistema judicial quando se tratou de perseguir Trump. Há consenso entre os especialistas sobre a força do caso no aspecto da falsificação contábil, especialidade do Ministério Público de Manhattan. As principais testemunhas são contra Trump. Porém, há dúvidas que exigem encarar o futuro do caso com ceticismo. Certamente, este será o único julgamento criminal dos quatro pendentes que será realizado antes das eleições.

Até quinta-feira, as partes só conseguiram selecionar 7 dos 12 membros do júri . Destes, dois foram posteriormente rejeitados. A lentidão responde à dificuldade em encontrar jurados que ambos os partidos considerem imparciais num distrito onde os democratas venceram com 86% em 2020. Apesar dos seus insultos ao sistema de justiça, do seu desprezo público pelo juiz e pelo procurador, e da sua clara intenção de intimidar testemunhas em declarações públicas, Trump está a receber um tratamento requintado que resultou em várias vitórias processuais parciais para a sua defesa, para frustração dos seus críticos. Assim deve ser. O julgamento será um teste crucial para diluir o discurso vitimizador do ex-candidato a presidente nesta campanha.

Trump gaba-se de que os seus problemas judiciais lhe dão votos, mas não é o caso, e a prova é que ele tentou por todos os meios não sentar-se no banco. As pesquisas revelam que uma condenação seria letal para suas aspirações. A lentidão da burocracia judicial americana fez parecer que Trump nunca seria responsabilizado. Se essa burocracia conseguir abstrair-se completamente do carácter e da campanha para levar a cabo o julgamento, talvez alguns eleitores consigam finalmente vê-lo simplesmente pelo que é: um cidadão acusado de quase 90 crimes.

Editorial do EL PAÍS, em 19.04.24

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Brasil hoje é governado com base na pirraça, na vingança e no rancor nos Três Poderes

Comandos da Câmara e do Senado retaliam STF, que quer se vingar de Bolsonaro e Lava Jato, enquanto Lula opera política externa em represália aos Estados Unidos e seus aliados

Lula, Lira e Pacheco, assim como alguns ministros do STF têm agido com o fígado  (Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO)

Por onde se olha, no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário, o que se vê é um país governado ou movimentado por pirraças, rancores e vinganças. É o que dá o tom dos temas que dominam os debates, declarações e decisões que, em uma democracia saudável e pacificada, tenderiam a ser baseados nos ideais de interesse público.

Exemplo claro dessa gestão baseada nos revides se dá nas atuações de Rodrigo Pacheco e, sobretudo, Arthur Lira, no comando das duas Casas no Congresso. Lira, por exemplo, irritado com a perda de espaço no governo, a briga pessoal com Alexandre Padilha, e com o fato de que teima em não aceitar o esvaziamento de sua força diante do inevitável fim do mandato no comando da Mesa, inventou de resgatar CPIs inócuas sobre assuntos debatidos cotidianamente, sem fatos determinados, que, como as demais recentemente realizadas no Congresso, não vão levar o país a nenhuma solução prática. Tudo, claro, para fustigar o governo e mostrar que ele ainda pode atrapalhar bastante qualquer pauta que Lula queira levar adiante. Em uma das CPIs, também move uma peça no sentido de se vingar do Supremo Tribunal Federal (STF) após decisões que levaram a buscas em gabinetes de parlamentares e à prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado de matar Marielle Franco.

O estilo vingativo de Lira, embora emblemático, se assemelha ao sentimento de grande parte dos parlamentares atualmente, na mesma cruzada contra o STF. Tanto na Câmara quanto no Senado, onde o presidente Rodrigo Pacheco, desde que foi avisado de que não seria indicado pelo governo a uma vaga na Corte e que seu futuro estava em uma disputa eleitoral de 2026, passou a também confrontar o STF com decisões que agradam ao público e à bancada bolsonarista. Foi o que se deu na votação da PEC das Drogas, criada e votada às pressas apenas para peitar o debate em andamento na Corte.

O próprio STF também parece agir com rancor e vingança em primeiro plano, que empurra penas excessivamente altas aos executores utilizados para os ataques de 8 de janeiro, que muda suas decisões para puxar de volta inquéritos contra políticos para tê-los nas mãos ou enfia tudo o que envolve ilícitos e supostos ilícitos praticados por Bolsonaro e sua trupe em um inquérito só, comandado justamente pelo principal alvo do bolsonarismo: o ministro Alexandre de Moraes. Também no STF e em outros espaços do Judiciário controlados por aliados de Moraes e Gilmar, há um claro sentimento de vingança e rancor com a Lava Jato que, entre erros (foram muitos) e acertos (igualmente), ousou desafiar o topo da classe política e flertou com investigações contra integrantes do próprio Judiciário.

STF é alvo do Legislativo e parte da Corte mira Lava Jato e bolsonarismo Foto: Antonio Augusto/STF

Também Lula chegou inegavelmente ao poder movido por um sentimento de vingança contra Sergio Moro e a Lava Jato, que impuseram a ele mais de 580 dias preso na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. A ponto de ter dito publicamente que, enquanto preso, afirmava que só estaria tudo bem ao “f… o Moro”.

Mas fosse apenas o embate contra um hoje senador com pouca expressão e articulação no Congresso, seria menos pior. O aspecto de vingança, pirraça e rancor no governo a afetar a imagem e a vida do brasileiro se dá no cenário externo. Movido pela ideia de que os norte-americanos tiveram papel preponderante na Lava Jato (seu entorno acha que tudo não passou de uma conspiração de americanos com a turma de Curitiba para quebrar players brasileiros no exterior), Lula resolveu romper a histórica relação de aliança entre o Brasil e os Estados Unidos para se alinhar a um outro bloco de países que inclui China, Rússia, Irã e mais uma penca de Nações que se unem na denominação de “Sul Global”. Na mesma linha da pirraça e rancor estão os embates com Israel, um aliado dos americanos e que foi usado como bandeira pelo bolsonarismo evangélico. Fosse pragmático e não agisse com o fígado, Lula não teria tirado o país da posição que sempre esteve nos conflitos no Oriente Médio: a de defensor da solução pacífica dos conflitos, com repúdio frontal ao terrorismo. O mesmo vale para o conflito entre os invasores russos e os ucranianos.

Onde mais uma gestão baseada no rancor, com uma guerra geral entre os representantes dos Três Poderes, vai nos levar? Dificilmente será na superação do cenário fiscal difícil que se avizinha, do alastramento do crime organizado se transformando em máfia, ou da epidemia de dengue. Problemas suficientes para render prioridade e atenção de nossos governantes se não estivessem hoje movidos por vingança.

Ricardo Corrêa, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.04.24

‘Guerra Civil’, a guerra civil que triunfa e aterroriza os Estados Unidos ao mesmo tempo que envia uma mensagem ao resto do mundo

Alex Garland dirige um filme “anti-guerra” contra a polarização: “Seria uma loucura pensar que dois estados não concordariam sequer em derrubar um presidente fascista”

Alex Garland, diretor de cinema, retratado em 16 de abril de 2024. (San Burgos)

Alex Garland se preocupa com o rumo que o mundo está tomando. Especialmente com as competições internacionais em todas as reportagens e as eleições nos EUA tão próximas. Felizmente, este cineasta britânico de 53 anos está menos preocupado com as discussões acirradas que o seu último filme abre: “É inevitável. “Hoje está tudo polarizado”, aponta com alguma frustração, mas resignado. Neste constante confronto social é justamente onde germinou a ideia de Guerra Civil , preocupada com questões que levantam bolhas, como indica o seu nome guerra civil.

“Há uma histeria coletiva. É por isso que eu queria filmar esse filme. Isto é demonstrado pela resposta distorcida ao discurso de Jonathan Glazer sobre Gaza na cerimónia dos Óscares. Nem pararam para ouvir o que ele dizia, o que era bastante claro ”, explica Garland ao EL PAÍS de Madrid, tão sério e meditativo nas suas palavras como fez o diretor da Zona de Interesse na gala. É por isso que, num clima tão dividido, seu quarto filme atraiu discussão desde o primeiro trailer. Porque Guerra Civil , que estreia esta sexta-feira nos cinemas espanhóis, não procura dar respostas e deixa parte do seu discurso em aberto. “Talvez estejamos acostumados a receber mensagens mastigadas, mas os pontos estão aí para juntá-las”, repetiu ele em plena promoção. Numa sequência do filme, um miliciano aponta uma espingarda para os protagonistas: “Que tipo de americano você é?” Sua pergunta já está carregada de mensagem e política. Nos EUA ou na Espanha.

Na sua sinopse mais simples, o filme é a viagem de um grupo de jornalistas pelos Estados Unidos destruídos em busca de grandes furos sobre este conflito. No centro emocional não está a política, mas o choque geracional entre dois fotógrafos de guerra: o veterano Lee ( Kirsten Dunst ), imerso em dezenas de horrores, e a jovem Jessie ( Cailee Spaeny ), pronta para conquistar o mundo com sua Nikon. e fotos em preto e branco.

É a própria Dunst quem explica no filme o símile jornalístico que Garland procura: o objetivo da fotografia de guerra não é fornecer respostas, mas deixar o público chegar às suas próprias conclusões. O personagem, assim como o diretor, tem dúvidas se conseguirá atingir esse objetivo. A Guerra Civil opta por não destacar as suas filiações políticas, não menciona partidos ou espectro ideológico. As colunas de análise não deixaram de enfatizar este ponto, no The New York Times, mas também em jornais não tão dados à crítica cinematográfica como o Financial Times ou o Foreign Affairs , que intitulavam: “Ele triunfa porque a sua política não faz sentido”. Eles o criticam por não tomar partido: por não brincar de polarização.

Nick Offerman, como presidente dos Estados Unidos em imagem de ‘Guerra Civil’.

Garland, de fato, deixou claro ao escrever o roteiro em 2020, nascido da raiva, que o importante não era a política americana, mas um extremismo que pudesse ser transferido para qualquer lugar: “A polarização é global, tanto nas democracias ocidentais como fora dela. Não é tudo por causa de Donald Trump; O ex-presidente não explica outros fenómenos como a estupidez do Brexit. Por que isso acontece? Em parte por causa das redes sociais e também por causa do fracasso do centrismo. Sou centro...esquerda, embora centrista. Durante anos, esquerda e direita trocaram poder, mas a vida das pessoas não muda. Aqueles que são pobres continuam pobres e, obviamente, ficam irritados e frustrados. Não é surpreendente”, explica Garland, falando em tom lento e prolongado, mas deixando clara a sua posição política, a mesma pela qual tem sido criticado. “Falo como ser humano e sinto que rompi o cordão umbilical com o filme, porque dirigir é um trabalho, então qualquer discussão é reconfortante. O que me incomoda é a posição política inabalável de alguns dos grandes meios de comunicação, não só pela forma como o contam, mas pelo que escolhem contar”, aponta, numa crítica à divisão também dentro dos meios de comunicação social.

Garland simplesmente localizou a acção nos Estados Unidos porque é o sistema que o resto do mundo conhece, por vezes “mais do que o nosso”. Mas, claro, a discussão sobre o filme ficou ainda mais acalorada depois do sucesso nos cinemas de lá. Civil War é o lançamento de maior bilheteria da história do estúdio independente A24 , seu primeiro número um. O jornalista Matthew Belloni, no podcast da indústria The Town, questionou se os americanos estariam dispostos a ver no grande ecrã os “problemas que aparecem nas notícias todos os dias”, levando as catástrofes da CNN um passo em frente e a Fox News num ano eleitoral. Mas parece que eles queriam. Pelo menos ficaram curiosos ou mórbidos em ver tudo destruído, porque 17% do público aproveitou nas salas IMAX (imagem máxima), para apreciar o carácter espectacular da distopia e do filme mais caro da distribuidora, com um orçamento de cerca de 50 milhões. dólares.

A partir da esquerda, Stephen McKinley Henderson, Kirsten Dunst, Cailee Spaeny e Wagner Moura, em ‘Guerra Civil’.

Um presidente de três mandatos

No seu zelo frio e jornalístico, o filme não explica como chegou às circunstâncias em que a acção se desenrola, embora as pistas estejam aí: o presidente (Nick Offerman) prolongou a sua estadia na Casa Branca com um terceiro mandato, contornar a Constituição e dissolver o FBI; “o massacre da antifa” aconteceu, mesmo que o espectador não saiba quem são as vítimas e os algozes; e um grupo maoísta rebelou-se em Portland. A Califórnia e o Texas, antagonistas na vida política real, estão unidos com um objectivo: derrubar um presidente fascista. Garland acredita que há um certo otimismo nesse movimento: “Para alguns foi uma loucura. Para mim seria uma loucura pensar que dois estados nem sequer concordariam em derrubar um presidente fascista. No final da Segunda Guerra Mundial também vejo um certo otimismo. Acabaram por dizer que o fascismo não era uma boa ideia e que os direitos humanos tinham de ser protegidos. O pessimismo é que os humanos não são bons em evitar problemas terríveis. Mesmo que aprendamos mais tarde, sempre caímos.” Ele também vislumbra esse otimismo ao colocar o ideal jornalístico como protagonista, apesar de ter consciência de que a profissão hoje não é muito popular: “Todo mundo te odeia”, disseram-lhe.

Seu amor pela profissão vem de seu pai, que durante décadas desenhou caricaturas políticas para o The Telegraph. Quando jovem, Garland tentou fazer carreira como enviado especial. Aos 26 anos escreveu The Beach sobre sua juventude desesperada, que posteriormente adaptou para o cinema com o diretor Danny Boyle , e aos poucos foi se deixando levar pelas ondas. Mas ao longo de seus quatro filmes, Garland nunca deixou de lado os temas comuns dos jornais. Em Ex_Machina (como na série Devs ) ele mergulhou no poder das empresas de tecnologia, na inteligência artificial e até no consentimento, que depois desenvolveu até limites surreais em Men ; Enquanto isso, com Aniquilação ele criou uma metáfora bucólica em torno das mudanças climáticas. Deixando sempre parte das conclusões à mercê do espectador.

Diretor Alex Garland, durante as filmagens de ‘Guerra Civil’.

Guerra Civil certamente tem a embalagem mais fácil de entender, pois, embora ele a tenha escrito antes, as imagens evocam inevitavelmente o que aconteceu desde 2020: do assalto ao Capitólio à guerra na Ucrânia. Hoje é inevitável falar de Israel, onde vê um claro extremismo, e do tratamento dispensado aos jornalistas lá: “Suspeito que a razão pela qual Israel não permite a entrada de jornalistas em Gaza é para controlar a guerra de relações públicas. Na Guerra do Vietname, os jornalistas tinham acesso aberto e isso criou um problema no governo dos EUA. O jornalismo levou a opinião pública contra a guerra. Desde então, os governos têm tentado restringir os jornalistas de todas as atividades na guerra. No Iraque, eles foram com os militares, que os protegeram, mas também os controlaram”.

Esse olhar anti-guerra é o que move Garland. O diretor recomendou Massacre aos atores . Venha e veja , drama russo sobre a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. Ele acredita que “não existem tantos filmes anti-guerra” como este. Apocalypse Now o inspirou, sim, mas ele reconhece que tem uma parte de romantismo com músicas e imagens que confunde o pacifismo. Para ele isso é normal: “Não creio que a intenção seja alguma vez fazer um trabalho a favor da guerra, mas isso não os impede de o fazer. Eles não a aplaudem, mas também não se opõem a ela, simplesmente mergulham na sua emoção. Espero não ter feito isso aqui”, ressalta, evocando o momento em que o jornalista interpretado por Wagner Moura vê uma batalha entre dois exércitos e fica animado para ir conferir por iniciativa própria . “Quando você mergulha nos soldados você pode ver em um dia medo, diversão, piadas, tédio… é o estado humano. Tal como a amnésia de esquecer os horrores de um conflito após o outro. Da Ucrânia a Gaza.”

Cailee Spaeny e Kirsten Dunst (à direita) em imagem de ‘Guerra Civil’.

Esse processo de reflexão e um filme tão bom o deixaram exausto. Ele reconhece isso ao tocar os olhos: “Eu só quero parar; não para sempre, mas pare.” Talvez agora ele deseje ser o homem mencionado no filme que vive pacificamente em sua fazenda esperando que tudo acabe. Por enquanto, ele acompanhará Ray Mendoza, ex-membro do Navy Seal e conselheiro militar em Guerra Civil , dirigindo seu primeiro filme, Warfare , "para lhe explicar a parte mais técnica". Agora que a direção não o estimula, ele se reencontra com Danny Boyle e Cillian Murphy na nova trilogia da saga do apocalipse zumbi 28 anos depois , após décadas adiando esse projeto. A experiência de ter conhecido uma pandemia real como a Covid influenciará você? “Eu não tinha pensado nisso, mas talvez tenha pensado: tenho uma ideia de como algo pode ser terrível, mas libertador. É um filme que tenta conceituar como é um apocalipse quando tanto tempo passa.” Diante de tudo que o preocupa, o apocalipse zumbi quase acalma o diretor.

Eneko Ruiz Jiménez, o autor deste artigo,é jornalista.Publicado originalmente no EL PAÍS,  em 18.04.24

Da necessária paridade no Judiciário

O aumento na atuação feminina não se reflete na esfera pública do poder: ainda são poucas as mulheres que alcançaram o cargo de ministras das Cortes superiores

Advogada Anna Maria da Trindade dos Reis - (crédito: Divulgação)

Quando iniciei minha trajetória na advocacia, só existiam ministros homens e poucas eram as mulheres advogadas atuantes perante as Cortes Superiores, destacando-se Maria Cristina Peduzzi (atual ministra do TST), Rosa Maria Brochado, Heloísa Mendonça e Marisa Polletti

Nessa caminhada, fui acompanhada por Mônica Goes, Fernanda Hernandez, Ana Tereza Basílio e Renata Fontes. Como se vê, contavam-se nos dedos as advogadas em constante atuação. Hoje, com alegria, o número aumentou sensivelmente e não causa surpresa a atuação feminina perante os tribunais.

Infelizmente, esse aumento na atuação feminina não se reflete na esfera pública do poder: ainda são poucas as mulheres que alcançaram o cargo de ministras das Cortes superiores e a sua ocupação forma, em realidade, um desenho piramidal, com muitas magistradas em atuação no primeiro grau, algumas alçadas a desembargadoras e pouquíssimas nos Tribunais Superiores.

Recentemente muito se louvou, e com razão, sobre os 35 anos da instalação do STJ, mas não passou despercebido que dos 103 ministros que já o compuseram ou, ainda, o compõem, apenas nove mulheres foram alçadas ao cargo de ministra, sendo que a primeira, Eliana Calmon, somente foi empossada em 1999.

Com as recentes aposentadorias das ministras Laurita Vaz e Assusete Magalhães, remanescem apenas cinco ministras. As ministras Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti e Regina Helena são oriundas do TJDF, TRF1 e TRF3, respectivamente. Provenientes da advocacia, apenas as ministras Maria Thereza de Assis Moura, atual presidente, e Daniela Teixeira.

É muito pouco diante do gigantismo da jurisdição e da harmonização de composição do STJ, formado por membros egressos da Justiça Federal, Ministério Público e advocacia.

No STF, não é diferente: somente em 2000 foi empossada a primeira ministra, Ellen Gracie, já aposentada e, até hoje, uma referência de jurista -, seguida apenas pelas ministras Cármen Lúcia (única remanescente) e Rosa Weber, recentemente aposentada e sua vaga foi preenchida por um homem.

No TSE, além da atuação das citadas ministras do STF, apenas quatro mulheres foram nomeadas até o momento como ministras juristas: Luciana Lóssio (2011), Maria Claudia Bucchianeri (2021), Edilene Lôbo, primeira negra da história do TSE, e Vera Lúcia Araújo, segunda negra a ocupar a mesma posição (2023).

Dos 26 ministros que compõem o TST, apenas sete são mulheres. No STM, a ministra Maria Elizabeth, empossada em 2007, segue sendo a única representante feminina.

No TCU não é diferente. A presidência só foi exercida em duas oportunidades por mulheres: Elvia Lordello Castelo Branco (1994) e Ana Arraes (2020). No momento, não há nenhuma representante feminina na Corte.

Até o momento, o Ministério Público Federal foi chefiado por uma mulher apenas uma vez, de 2017 a 2019, pela subprocuradora-geral Raquel Dodge.

Essa constatação também atinge a advocacia no que se refere aos cargos de direção. A despeito de sermos a maioria nas faculdades de direito e de o número de advogadas superar o de advogados em várias seccionais, até o momento, nenhuma mulher exerceu a presidência e poucas a diretoria da OAB Federal — atualmente, composta paritariamente — sendo concedida apenas a uma, a festejada Dra. Cléa Carpi, a honrosa medalha Rui Barbosa.

Sob a presidência de Felipe Santa Cruz foi aprovada a histórica paridade de gênero nas eleições da OAB, obrigando a que as chapas sejam compostas por 50% de mulheres. Ainda assim, em exercício no Conselho Federal, o percentual masculino supera em muito a presença feminina, jamais foi indicada uma advogada para o CNJ, a despeito de ter apresentado lista paritária para o CNPM, hoje composto por 12 homens e 2 mulheres.

O CNJ, apesar de contar apenas com quatro mulheres em sua composição, recentemente editou a importante Resolução CNJ 525/2023, de relatoria da então Conselheira Salise Sanchotene, prevendo que, por ocasião do preenchimento das vagas por merecimento, os tribunais utilizem lista exclusivamente para mulheres, alternadamente, com a tradicional lista mista, justamente para combater a ausência de mulheres na estrutura de poder.

A despeito da necessária ação afirmativa, essencial para refletir a atuação feminina e a pluralidade que resultarão em formação jurisprudencial mais humanista, muitos magistrados, inconformados e não compreendendo o objetivo democrático e social da medida, tentaram, sem êxito, impedir a realização do primeiro concurso pela atual regra.

Esses fatos, antigamente ignorados ou raramente contestados, agora atraem um necessário olhar para a disparidade perpetrada, e têm provocado manifestações e estudos visando à efetivação da paridade de gênero, que culminará em futura paridade racial, em busca da verdadeira democracia que a pluralidade pode ofertar à humanidade. Avanços são impositivos e devem ser celebrados. A reflexão da celebrada escritora e Des. Andrea Pachá de que "a magistratura só faz sentido se for no coletivo, no plural, na afirmação dos direitos humanos e das garantias sociais" se aplica também à advocacia e às demais funções do Direito.

Ana Maria Trindade dos Reis, a autora deste artigo, é advogada desde 1986 e fundadora do Trindade & Reis Advogados Associados, composto igualitariamente por advogados e advogadas, com atuação nas Cortes sediadas em Brasília, presidente do Cesa/DF, membro da Alumni/UnB, IAB, ABMCJ/DF, IADF e do coletivo Elas Pedem Vista. Publicado originalmente no suplemento Direito e Justiça do Correio Braziliense, em 18.04.24

Futuro da juíza Gabriela Hardt é decidido entre ódios e paixões

A divisão do CNJ mostra como a maior operação de combate à corrupção do país conquistou amor e ódio, elogios e críticas, na mesma proporção

 

Gabriela Hardt é tão combatida por defensores do presidente Lula, como seu antecessor, o hoje senador Sérgio Moro (União-PR -  (crédito: kleber sales)

A Operação Lava-Jato dividiu o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entre os 15 membros, oito votaram contra o afastamento dos juízes Danilo Pereira Júnior e Gabriela Hardt (atual e ex-titular da Vara da Lava-Jato em Curitiba), nos moldes da posição defendida pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso. Sete conselheiros concordaram com a deliberação do corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O placar apertado manteve Hardt e Pereira em suas funções. Mas os desembargadores federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e Loraci Flores de Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), não tiveram a mesma sorte. Por nove votos a seis, prevaleceu a decisão de Salomão de afastamento cautelar dos magistrados por supostas irregularidades em julgamentos envolvendo a Lava-Jato, com descumprimento de decisões do STF.

A divisão do CNJ mostra como a maior operação de combate à corrupção do país conquistou amor e ódio, elogios e críticas, na mesma proporção. Barroso e Salomão defenderam suas opiniões com veemência. "Considero que foi medida ilegítima, arbitrária e desnecessária o afastamento dos juízes por decisão monocrática sem deliberação da maioria e sem nenhuma urgência que não pudesse aguardar 24h para ser submetida a esse plenário. Entendo que tal decisão contrariou frontalmente decisão do STF", declarou o presidente do CNJ, que pediu vista quanto à abertura de processo administrativo disciplinar para apreciar o caso.

Barroso ressaltou que recebeu várias manifestações de associações de magistrados que defenderam a permanência dos juízes e ressaltou que, em 30 anos na advocacia, nunca ouviu qualquer rumor quanto à honestidade de Gabriela Hardt. "(Essa juíza) que todos dizem ter reputação ilibada, ser dedicadíssima, seríssima, não é uma pessoa que, no meio jurídico, quem é do ramo, eu fui advogado 30 anos, todo mundo sabe quem é quem", afirmou. "Quando o juiz é incorreto, tem má fama, todo mundo sabe. Essa moça não tinha absolutamente nenhuma mácula sobre a carreira dela, para ser sumariamente afastada", acrescentou. 

Salomão, por sua vez, apontou indícios de prática de crimes como corrupção, peculato e desvios de recursos na homologação de uma fundação que ficaria encarregada de gerir recursos bilionários obtidos por meio de acordos de leniência no âmbito da Operação Lava-Jato. A entidade nunca chegou a ser criada, mas teve o aval de Gabriela Hardt.

Em seu voto pelo afastamento dos juízes, Salomão citou a frustração pelos rumos da Operação Lava-Jato. "É bem verdade que a denominada 'Operação Lava-Jato' desbaratou um dos maiores esquemas de corrupção do país, vitimando a Petrobras, também seu maior acionista a União Federal, centenas de acionistas minoritários da empresa, além de terceiros atingidos direta e indiretamente pelas práticas criminosas', afirmou o corregedor nacional de Justiça.

Salomão conclui: "No entanto, constatou-se — com enorme frustração — que, em dado momento, tal como apurado no curso dos trabalhos, a ideia de combate a corrupção foi transformada em uma espécie de 'cash back' para interesses privados, ao que tudo indica com a chancela e participação dos ora reclamados. Portanto, não se trata de pura atuação judicante, mas sim uma atividade que utiliza a jurisdição para outros interesses específicos, não apenas políticos (como restou notório), mas também — e inclusive — obtenção de recursos".

Gabriela Hardt é tão combatida por defensores do presidente Lula, como seu antecessor, o hoje senador Sérgio Moro (União-PR). Na última segunda-feira, quando foi afastada de suas funções de forma cautelar pelo corregedor nacional de Justiça, um vídeo da audiência em que a juíza interrogou o presidente Lula, então réu da Operação Lava-Jato, circulou em vários perfis nas redes sociais, com comentários apontando a suposta arrogância da magistrada que tentava conduzir o depoimento. "Doutor, e assim, senhor ex-presidente, esse é um interrogatório e se o senhor começar nesse tom comigo a gente vai ter problema", afirmou Hardt. 

Na ocasião, Lula era ex-presidente e estava representado na audiência pelo então advogado Cristiano Zanin, hoje ministro do STF, nomeado pelo presidente. A juíza condenou Lula a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em processo que posteriormente foi anulado pelo Supremo.

Apesar de ter permanecido no cargo, Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior estão bem distantes do desfecho do caso. Barroso pediu vista do pedido de abertura de processo administrativo disciplinar, mas, assim que a análise for retomada, é bem possível que a investigação seja aberta, com provável aplicação de penalidade. Contra Sérgio Moro também há um pedido de investigação. Embora ele não seja mais magistrado, na visão de Salomão, poderá pagar com inelegibilidade por eventuais atos praticados na 13ª Vara Federal de Curitiba.

Ana Maria Campos, a autora deste comentário, é jornalista.  Publicado originalmente no suplemento Direito e Justiça do Correio Braziliense, em 18.04.24

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A ministra oficiosa

Janja se apresenta como ‘articuladora’ de políticas públicas e diz que Lula lhe dá ‘total autonomia’

A julgar pelo que disse em recente entrevista à BBC, a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, decidiu autonomear-se, certamente com a anuência do marido, como “articuladora” do governo de Lula da Silva. “Meu papel é de articuladora, que fala sobre política pública”, informou Janja candidamente, numa reportagem sobre as funções exercidas por primeiras-damas na América Latina. Além de estar convicta de que precisa “ressignificar” o papel de primeira-dama, Janja disse mais: “(Lula) me dá total autonomia para eu fazer o que faço”, sem hierarquia entre ambos.

Pois fazer o que faz parece ser o grande problema da primeira-dama e seu esforço desmedido para exercer influência política e desempenhar papel prático no governo – tarefa para a qual não tem mandato concedido nem pelos eleitores nem pela legislação vigente. Pelo que Janja faz e da maneira como faz, o País corre o risco de ter uma espécie de poder paralelo nas mãos da primeira-dama, lastreado em sua condição singularíssima de cônjuge de Lula, borrando os limites entre o público e o privado.

Antes fosse, portanto, uma demonstração meramente retórica do ativismo político de Janja, ou antes se resumisse a uma tentativa de promover o debate sobre o papel de primeira-dama, historicamente associado a estereótipos. Não. O que Janja admitiu foi a tradução, em palavras, do que tem materializado em atos: imiscuir-se em assuntos do governo, interferir na ação de ministérios, direcionar escolhas de políticas públicas e demonstrar poder, pura e simplesmente.

Seus tentáculos políticos avançam inclusive em poder de veto em áreas como economia, defesa e comunicação. Ademais, Janja rapidamente aprendeu a cosmologia palaciana, segundo a qual a ocupação dos espaços físicos é também uma forma de exercício do poder: a primeira-dama é hoje um anteparo entre o gabinete presidencial e os visitantes, incluindo ministros que precisam despachar com o chefe.

Não se deseja aqui que Janja restrinja suas atividades à “organização de chás de caridade”, como sublinhou na entrevista. Nem se discute sua autonomia para exercer, na intimidade, o papel de primeira-conselheira do presidente ou a disposição de Lula para ouvi-la em assuntos para os quais deseja saber sua opinião. Tampouco a liberdade da primeira-dama para debater, publicamente, temas em que supostamente inspire conhecimento. Mas convém pedir bom senso.

Certamente há um caminho do meio entre o papel decorativo e o excessivo ativismo. Não à toa, recentes tentativas de definir cargos e protagonismos excessivos para primeiras-damas esbarraram em resistência e recuos em diferentes países. Foi o caso do Chile de Irina Karamanos, mulher do presidente Gabriel Boric, e da França de Brigitte Macron, mulher de Emmanuel Macron.

Acreditando ter prerrogativas para tanto, Janja já representou Lula numa visita ao BNDES para debater projetos do Fundo Amazônia e atropelou o rito de conversas da equipe econômica ao fazer um pedido expresso para redução dos juros do cartão de crédito. Como Janja é em tese indemissível, porque primeira-dama não é cargo, seria bom que ao menos não competisse com os ministros formalmente nomeados e remunerados para auxiliar o presidente.

 Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.04.24

O Batalhão Siberiano tem como alvo Putin nas trincheiras da Ucrânia

Membros desta unidade armada de opositores russos, que afirmam lutar pela liberdade das minorias étnicas do seu país, propõem a realização de ataques contra o círculo de poder do Kremlin

Soldados do Batalhão Siberiano em manobras no dia 10 de abril na Ucrânia, em local não divulgado. (Foto: VALENTYN OGIRENKO (REUTERS)

Existem três grupos armados russos que lutam nas fileiras ucranianas. São opositores de Vladimir Putin que consideram que o tempo para confrontá-lo politicamente acabou. Destas, as unidades que estão há mais tempo na guerra são o Corpo de Voluntários Russos (RDK), de extrema-direita, e a Legião da Liberdade da Rússia, com uma ideologia liberal próxima das teses de Alexei Navalny, falecido neste mês de fevereiro. em uma prisão russa A última organização a invadir foi o Batalhão Siberiano. Ao contrário das outras duas unidades, os seus soldados fazem parte da Legião Internacional Ucraniana. E também, ao contrário deles, o seu objectivo é descentralizar o poder da Rússia em favor das regiões e “libertar” as suas minorias étnicas.

Control é o codinome de um dos soldados mais antigos do Batalhão Siberiano. Ele não especifica a idade, mas diz ter mais de 40 anos. Ele já lutou como voluntário pela Ucrânia na guerra de 2014 contra os separatistas pró-Rússia na região de Donbass. Ele nasceu em Moscou, assim como seus pais, mas é tártaro: seus avós foram deportados pela União Soviética da península da Crimeia, anexada ilegalmente pela Rússia em 2014. O hobby do controle é história. Conheça e explique o passado de cada prédio que circunda o parque de Kiev onde acontece a entrevista ao EL PAÍS: “Se você quer saber o que o futuro lhe reserva, você deve estudar história. “Se você estudar, verá que essa guerra iria acontecer.”

O controlo estabelece um paralelo entre a Crimeia e a Ucrânia com a Espanha e a Catalunha. Ele acredita que um modelo a seguir é o do autogoverno e da defesa da identidade catalã que se desenvolve em Espanha. Johnny, el nombre en clave de un compañero de armas de Control, añade que el Batallón Siberiano lucha por “la liberación” de las minorías nacionales de la Federación Rusa y por que su país tenga un modelo confederado o, por lo menos, el de Estados Unidos.

Johnny, originário de São Petersburgo, ingressou no Batalhão Siberiano em outubro de 2023, após deixar a Rússia um ano antes. Naquele mês de outubro assistiu-se à primeira ação oficial do batalhão na frente de guerra. No início da sua actividade na Ucrânia contavam com 60 voluntários, agora dizem que há muitos mais. Representantes do grupo garantiram à Euronews em Janeiro que o seu objectivo era ter 300 combatentes. Nenhum dos três grupos armados russos que lutam com Kiev quer revelar quantas pessoas compreendem, mas o número global pode ser ligeiramente superior a mil, segundo estimativas de vários meios de comunicação social.

Johnny chegou ao batalhão através da mediação do Conselho Cívico, uma entidade política de opositores russos estabelecida na Polónia. Esta entidade colaborou com o RDK, mas no verão de 2023 romperam as relações devido à ideologia ultranacionalista daquele grupo armado. Os russos que agora contactam o Conselho Cívico para lutar com a Ucrânia são encaminhados para o Batalhão Siberiano.

O Corpo de Voluntários e o Batalhão Siberiano lutaram lado a lado contra as tropas do Kremlin, mas politicamente são entidades opostas. O fundador do Batalhão Siberiano, Vladislav Amosov, queria alistar-se no RDK, mas foi rejeitado por não ser eslavo, conforme noticiou este jornal em junho de 2023 . Amosov é um oficial militar aposentado da etnia Yakut. Outros combatentes de minorias nacionais decidiram a partir de então ingressar no Batalhão Siberiano.

As diferenças políticas entre os três grupos ficaram claras numa conferência de imprensa conjunta que deram em Março passado, em Kiev . O fundador do RDK, Denis Kapustin, apontou o Batalhão Siberiano como exemplo das divergências entre eles. Jolod, representante deste grupo na conferência, tomou a palavra para confirmar que o objectivo que os une é o derrube de Putin, mas que aspiram à descentralização do poder de Moscovo e à autodeterminação dos povos da Federação Russa .

Control cita quatro minorias étnicas que, na sua opinião, estão a ser especialmente maltratadas por Putin para russificar os seus territórios: os Yakuts, os Chubassians, os Buryats e os Evenkis. Muitos dos recrutados pelo exército russo para lutar na Ucrânia provêm destas nacionalidades, a fim de eliminar a sua população, segundo o Control. E o que sentem quando um destes concidadãos russos é morto em combate? Eles também não são vítimas? Johnny reage à pergunta rapidamente, sem hesitação: “O que eu sinto? Sinto o recuo do rifle contra meu ombro. Mesmo que ele fosse vizinho do meu bairro, se ele viesse invadir outro país, eu ainda o mataria.” “Há sempre a opção de não baixar a cabeça, como fizemos”, acrescenta.

Alvo o círculo de Putin

O Centro Razumkov, uma instituição ucraniana para estudos políticos e de segurança, publicou um estudo demográfico em 10 de abril no qual 25% dos entrevistados acreditavam que a guerra só poderia terminar com o colapso da Rússia . Os homens do Batalhão Siberiano consideram isso um dado adquirido. “Essa guerra não pode acabar no front, porque Putin continuará enviando 300 mil soldados e mais 300 mil, ele não se importa com a vida deles, vai mandá-los até conquistar o que deseja”, explica Johnny. “Esta guerra terminará em Moscovo, quando acabarmos com Putin e o seu círculo de poder”, sublinha. Para ele, é preciso haver uma “mudança de tática” para realizar operações em solo russo, para liquidar os homens de confiança do presidente. “ Se eles liquidam os oponentes na Europa, por que não podemos fazer o mesmo na Rússia?”, pergunta Control.

Questionado sobre a possibilidade de a União Europeia e os Estados Unidos verem estas ações de forma desfavorável, o Batalhão Siberiano prefere não comentar, mas tanto Control como Johnny estão convencidos de que já começou uma guerra mundial entre democracias ocidentais e países autoritários como a Rússia. Irã, China ou Coreia do Norte.

A política já não tem lugar na Rússia, dizem. O Conselho Cívico pode fornecer líderes para uma revolução, como os líderes bolcheviques que regressaram do exílio na Europa para derrubar o czar, “mas as tropas estão dentro do país”, teoriza Control. A morte de Navalny, personagem que, segundo ele, não era apreciado pela sua visão centralista e autoritária da Rússia, “é a prova de que a política acabou”. “Putin baseia o seu poder na violência e só se pode enfrentar esta força com maior força”, sublinha o veterano do Batalhão Siberiano.

Cristian Segura,  o autor deste artigo, escreve no EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce a profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e posteriormente em Pequim. É autor de três livros de não ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa. Publicado originalmente no EL PAÍS,em 17.04.24

Se condenado, Trump ainda poderá ser eleito presidente?

Um ex-presidente sendo julgado criminalmente é algo inédito nos EUA, e Donald Trump tem quatro casos diante de si. E mesmo assim deverá ser o candidato republicano. Mas o que acontecerá se for eleito?

Julgamento do primeiro caso criminal de Trump começou em Nova York (Foto: Jabin Botsford/REUTERS)

O ex-presidente Donald Trump, nome praticamente certo do Partido Republicano para concorrer na eleição presidencial dos EUA deste ano, não é um novato no banco dos réus. Em janeiro passado, um tribunal de Nova York determinou que ele pague milhões de dólares à escritora E. Jean Carroll por abuso sexual e difamação. Trump está recorrendo da decisão. Esse foi um processo civil.

Agora, Trump se tornou o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a ir a julgamento por acusações criminais. O caso, que começou nesta segunda-feira (15/04) num tribunal de Nova York, é sobre se ele comprou o silêncio da estrela pornô Stormy Daniels, sobre um encontro sexual entre ambos, para proteger a sua campanha eleitoral de 2016 para a Casa Branca.

Esse é o primeiro de quatro casos criminais – dois estaduais e dois federais – que Trump tem pela frente. O outro caso estadual envolve a acusação de tentar reverter a sua derrota na Geórgia na eleição presidencial de 2020. Num dos casos federais ele é acusado de ter conscientemente promovido mentiras sobre fraude eleitoral em 2020, e no outro, de ter mantido consigo ilegalmente documentos confidenciais do governo quando deixou a Casa Branca.

Trump poderá concorrer se condenado?

Sim. Não importando como vá terminar cada um desses casos, Trump ainda poderá concorrer à presidência dos EUA. A Constituição do país lista apenas três requisitos para uma pessoa concorrer: ela deve ser cidadã americana nata, ter ao menos 35 anos, e ter residido nos EUA por ao menos 14 anos. O texto não afirma que uma pessoa condenada não pode se tornar presidente.

A atriz pornô Stormy Daniels teria recebido dinheiro (desviado da campanha eleitoral) para calar sobre relação sexual com Trump (Foto: SMG/ZUMA Wire/picture alliance)

"Há muitos debates sobre se um candidato presidencial que foi acusado ou está envolvido num processo judicial em andamento pode concorrer ao cargo", diz a professora de ciência política Laura Merrifield Wilson, da Universidade de Indianápolis. "Mas eles se baseiam em questões morais, juízos de valor e opiniões, não em leis explícitas ou barreiras processuais."

Trump pode ser impedido de concorrer sob a 14ª Emenda?

A seção 3 da 14ª Emenda da Constituição dos EUA afirma que pessoas que "se envolveram em insurreição ou rebelião" depois de jurarem cumprir a Constituição são desqualificadas para ocupar qualquer cargo, civil ou militar, nos Estados Unidos.

Os ativistas que querem ver Trump desqualificado com base nessa cláusula afirmam que as ações do então presidente no período anterior ao ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, constituem participação numa insurreição. Eles argumentam que as mentiras de Trump sobre como os democratas roubaram a eleição incentivaram a turba que invadiu o Capitólio naquele dia.

Foram feitas tentativas para que Trump fosse removido das cédulas de primárias em alguns estados com base nessa emenda, "que foi originalmente usada para impedir que secessionistas retornassem a seus cargos no governo após a Guerra Civil Americana", explica o jornalista Brandon Conradis, editor do site de notícias políticas The Hill.

Mas, em março de 2024, a Suprema Corte derrubou uma dessas tentativas no Colorado, sob o argumento de que não são os estados que têm autoridade para impedir que pessoas se candidatem a cargos federais, mas o Congresso.

Essa decisão anulou tentativas semelhantes em outros estados. Como o Congresso está dividido, com os republicanos tendo maioria na Câmara dos Deputados e os democratas tendo uma maioria de apenas um assento no Senado, parece pouco provável que Trump seja impedido de concorrer com o recurso à 14ª Emenda.

Trump poderá votar se condenado?

Provavelmente não. O registro eleitoral de Trump é na Flórida, onde condenados não podem votar.

"A maioria dos condenados na Flórida recupera o direito de voto depois de cumprir toda a sentença, incluindo liberdade condicional ou liberdade provisória, e pagar todas as multas e taxas", explicou a jornalista de política Maggie Astor no New York Times.

Mas a liberdade condicional de Trump provavelmente não terminaria a tempo de ele recuperar seu direito de voto. Portanto, se condenado, Trump ainda poderia concorrer à presidência, mas não poderia votar.

Mas o que acontecerá se Trump for para a cadeia?

Ninguém sabe.

"Isso tudo é muito longe de qualquer coisa que já tenha acontecido", disse o especialista em direito constitucional Erwin Chemerinsky, da Universidade da Califórnia em Berkeley, ao New York Times. "É tudo suposição."

Legalmente, Trump continuaria elegível e poderia concorrer, mesmo atrás das grades. Se ele fosse eleito, fica a questão de como tomaria posse e de como iria conduzir reuniões.

Apoiadores e críticos de Trump se agridem 

Apoiadores e críticos de Trump se enfrentam perante tribunal em Nova York em abril de 2023Foto: Angela Weiss/AFP/Getty Images

"Trump poderia entrar com um processo para ser libertado com base no fato de que sua prisão o estaria impedindo de cumprir suas obrigações constitucionais de presidente", especula Astor.

Mas, mais uma vez, como nunca nada parecido com isso aconteceu nos EUA, é impossível dizer como as coisas seriam na prática.

Se eleito, Trump poderia usar o perdão presidencial para se beneficiar?

Em teoria, Trump poderia comutar sua sentença de prisão ou até mesmo tentar usar o perdão presidencial para si mesmo, mas esses seriam usos extremos do poder presidencial que provavelmente teriam sua constitucionalidade questionada na Suprema Corte (onde os juízes conservadores têm uma maioria de 6 a 3).

Como alternativa, o presidente Joe Biden, no fim de seu mandato, poderia perdoar Trump, se o republicano for vitorioso, para que o homem eleito pelos eleitores dos EUA pudesse governar o país.

Essas ações, porém, só se aplicariam aos casos federais e não aos julgamentos em Nova York e na Geórgia, pois presidentes não têm o poder de conceder perdão para condenações estaduais.

Carla Bleiker, a autora deste artigo, é jornalista. Pubicado originalmente por Deusteche Welle,  em 16.04.24

'Não quero que minhas filhas sejam felizes, mas que aprendam a fracassar': a psicóloga que ensina o valor de todas as emoções

Se não nos treinarmos para as emoções, não saberemos o que estamos sentindo, nem como enfrentar o medo, o fracasso ou a perda, diz Mar Romera

Não existe uma fórmula única para se educar uma criança. Não existem receitas.

É assim que pensa a psicopedagoga e professora espanhola Mar Romera, que ao se apresentar para esta entrevista me diz: "Sou mulher, mãe, sou filha, nasci no ano 67 do século passado, o que soa muito forte, e a palavra seguinte é muito difícil para eu dizer: sou viúva."

E então ela explica que as palavras são como o cérebro: é preciso treiná-las muito para que saiam com facilidade.

O mesmo acontece com as emoções: se não nos treinarmos para elas, não saberemos o que estamos sentindo, nem como enfrentar o medo, o fracasso ou a perda.

Romera, que presta assessoria pedagógica a professores, também dá palestras e tem vários livros publicados, entre os quais "Educar sem receita", "Família, a primeira escola das emoções" e "A escola que eu quero" (os títulos dos livros foram traduzidos do espanhol – não há edições no Brasil).

A BBC News Mundo, serviço de notícias da BBC em espanhol, conversou com a especialista sobre seu trabalho e sua visão sobre as emoções.

BBC News Mundo - Nas suas palestras você costuma dizer que não quer que suas filhas sejam felizes. É uma afirmação bastante dura.

Mar Romera - O que quero dizer com isso é que as emoções são uma resposta adaptativa e um produto da geração de química no nosso cérebro.

Quando digo que não quero que minhas filhas sejam felizes é porque quero que vivam cada circunstância com o que lhe cabe. Quero que sintam medo, nojo, tristeza, culpa.

Ou seja, que sintam medo se estiverem à noite em um local inseguro, pois isso salvará suas vidas; que sintam culpa ante algo errado, porque isso as posiciona no caminho para a reparação; que sintam nojo ante uma linha de cocaína, porque isso vai ajudá-las a rejeitar coisas que são prejudiciais ao seu corpo.

Nós confundimos o conceito de prazer e felicidade.

Pensamos que a eterna experiência do prazer é o que dá felicidade e esta tese nos leva às circunstâncias dos problemas de saúde mental que temos hoje.

Quando minhas filhas eram pequenas, tivemos um hamster e ele morreu.

Se eu quisesse que elas fossem felizes, do verbo ser, eu teria escondido o bichinho, comprado outro, inventado uma história. Qualquer coisa para que elas não experimentassem a perda.

Mas mais tarde, se passados os anos alguém de quem elas gostam lhes disser não, como eu faço para esconder essa perda delas? Ou a morte da sua avó, do seu pai...

Não consigo esconder todas essas perdas.

Querer que elas não fiquem tristes em nenhum momento é pedir que sejam psicopatas.

BBC News Mundo - Na sociedade atual enaltecemos a alegria e rejeitamos a tristeza. Existem emoções boas e ruins?

Romera - Nem ruins, nem boas. Nem negativas ou positivas. Nem mesmo agradáveis ou desagradáveis. Tudo isso é uma construção social.

Com a felicidade, por exemplo: em um grande parque temático você está feliz naquele momento, mas não é feliz, porque "ser" é uma condição de estabilidade.

A felicidade não é uma condição do ser humano. Precisamos viver todas as emoções para treiná-las, como se fosse uma academia.

A mesma coisa acontece com nosso cérebro. Você precisa ir a essa academia de emoções distintas, não apenas de uma delas. Você tem que viver tudo.

E temos que assumir a responsabilidade por nossas ações.

Por exemplo, nunca permiti que minhas filhas me dissessem "fiz isso sem querer".

É claro, eu entendo que se elas deixam cair um vaso no chão, não fazem de propósito, mas isso não as isenta de responsabilidade.

O que elas fizeram para que isso acontecesse, como é feito o conserto – varrer, economizar para comprar outro, não correr da próxima vez?

Quero que minhas filhas se sintam seguras para cometer erros, porque os erros são uma das melhores fontes de aprendizado. Quero que elas aprendam a fracassar.

Mar Romera nasceu em Heidemheim, na Alemanha, em 1967 (Cortesia)

BBC News Mundo - Agora que tudo gira em torno do sucesso, como educar os filhos para o fracasso?


Romera - As crianças não aprendem nada com o que lhes dizemos. Elas aprendem conosco.

Se eu quero que as notas sejam sempre boas, se eu aplaudo mais o gol feito do que o não feito, se eu encorajo que você seja o melhor, você inevitavelmente não aceitará o fracasso depois.

Mas também passa pelo comportamento: se falo mal da minha empresa, do meu chefe, do meu fracasso, se me irrita que as férias do meu cunhado sejam melhores que as minhas... as crianças veem isso.

O fracasso só se sustenta quando o bastidor da minha vida – aquilo que a sustenta – é uma escala de valores.

Poque pode ser que eu tenha tentado algo e fracassado, mas só vou dormir bem à noite quando revisar minha escala de valores e ver que as decisões que tomei estão de acordo com ela.

Só assim você poderá se recuperar do fracasso.

Podemos falar de um conceito que virou moda na pandemia, a resiliência, mas ela não se forma da noite para o dia.

Aprender a fracassar e recomeçar não tem a ver com boa ou má sorte. Você tem que trabalhar em construir uma atitude otimista.

Levei cinco décadas para entender que os seres humanos são livres.

Veja, obviamente, alguém não escolhe estar em Gaza neste momento, ou ser refugiado.

Não se pode escolher as circunstâncias, mas é possível escolher a atitude com que as enfrentamos. E isso depende da escolha da emoção com que vivenciamos essas circunstâncias.

BBC News Mundo - E como a emoção é escolhida?

Romera - Isso é gerenciar.

Falamos sobre regulação emocional, mas isso começa com a alfabetização emocional. Quer dizer: qual é o nome do que estou sentindo.

Comecei dizendo que as emoções não são positivas ou negativas. Depois, apoiando-me na teoria do psicólogo Roberto Aguado, defini-as como agradáveis ou desagradáveis. Agora, dei o salto e digo que elas são oportunas e inoportunas.

Por exemplo, sentir medo numa rua escura de uma cidade desconhecida pode ser apropriado, mas sentir medo em minha casa é inapropriado.

Aristóteles já disse isso, que é fácil ficar com raiva. O difícil é ficar com raiva da pessoa certa, na hora certa e com a intensidade certa.

Essa é exatamente a definição de excelência emocional: escolher a emoção certa, o momento certo, com a intensidade certa e a pessoa certa.

Para poder escolher, tenho que entender quais são as emoções, escolher no catálogo e ver dentro de mim o que acontece com elas.

Mas há uma série de erros sociais que nos levam a nomeá-los erroneamente e a não ter consciência emocional.

Mar Romera diz que as crianças devem poder vivenciar todas as emoções (Getty Images)

BBC News Mundo - E qual é, na sua opinião, a classificação das emoções?

Romera - Primeiro há as básicas: tristeza, medo, nojo, raiva, alegria. Depois tem a surpresa, que é uma emoção crucial, que passa muito rápido. E depois há outras mais, que são a curiosidade, a segurança, a admiração e a culpa.

Depois de conhecer o catálogo, é hora de ver o que acontece comigo, quando e com que gesto respondo ou com que comportamento eu ajo.

E conhecer o que ativa cada emoção. Se eu tiver essa estrutura, posso escolher a atitude que tenho.

Um exemplo: posso saber que a cor laranja me deixa com raiva, mas se não souber e de repente estiver em uma sala cheia de coisas laranjas, ficarei com raiva e não saberei por quê.

BBC News Mundo - Percebi que você não classificou o amor como uma emoção. Por quê?

Romera - O amor não entra nas emoções, é um sentimento que está ancorado na emoção básica da admiração.

Como qualquer outro sentimento, o amor é a âncora cognitiva das emoções.

Portanto, quando uma emoção se transforma em sentimento, outros fatores intervém no processo, como cultura, meio ambiente, costumes, etc.

Se as emoções são respostas adaptativas para a nossa sobrevivência, os sentimentos são mais suaves, prolongados ao longo do tempo.

BBC News Mundo - O que acontece às crianças quando dizem a elas o que deveriam sentir ou quando são impedidas de sentir certas coisas?

Romera - Acredito que uma coisa é marcar os limites do comportamento e outra é determinar o que a criança deve sentir.

Tenho que validar a sua raiva, reconhecê-la, mas isso não significa validar que você destrói os brinquedos. E às vezes misturamos tudo.

Você pode ficar com raiva o quanto quiser. Mas o que você pode fazer é controlar o comportamento derivado da raiva.

Por exemplo, se uma criança arromba uma porta porque está com raiva, ela pode ter todos os motivos do mundo para estar com raiva, mas não pode arrombar a porta.

É importante validar a emoção, reconhecê-la, mas não validar o comportamento derivado da emoção.

Por outro lado, nos centros educacionais restringimos comportamentos sem reconhecer as emoções que os provocam. Esse é outro erro.

Regras e limites proporcionam às crianças um ambiente seguro para crescer.

BBC News Mundo - Parece que fomos de um extremo a outro. De uma criação onde era normal muita severidade e até bater na criança para, agora, permitir tudo.

Romera - Aqui há muitas outras variáveis.

Para mim o fator determinante é que temos poucos filhos, e se você tem um jardim com 200 gerânios e uma orquídea você foca em cuidar da orquídea.

Quando há cinco ou seis filhos numa família, há primos, um círculo de interação entre iguais, o crescimento é muito mais saudável, global e natural.

Quando há uma criança para 17 adultos, nos deparamos com bebês superprotegidos, mimados demais, incapazes.

Mar Romera (Crédito: Cortesia) 

BBC News Mundo - Negligenciar as crianças é tão problemático quanto superprotegê-las?

Romera - Claro. Tudo gira em torno da possibilidade de elas terem um vínculo saudável. E isso deve ser feito com todas as estruturas da vida.

BBC News Mundo - Os jovens de agora são chamados de "geração de cristal". É isso mesmo? Eles que são sensíveis demais a tudo ou os adultos que não se permitem sentir nada? E o que fazer com eles?

Eu não tenho resposta; a única coisa que podemos fazer é ouvir.

Do meu ponto de vista, o nosso cérebro, que é paleolítico, foi colocado no século 21, onde tudo acontece muito rápido.

Nosso cérebro estava preparado para procurar comida, beber, ter relacionamentos íntimos, formar grupos para caçar bisões e superar desafios. Cinco coisas que nos permitiam não ser extintos.

Hoje vamos rápido, pelo mesmo caminho, sempre sentados e sem ter que procurar nada porque está tudo ao nosso alcance. Nós atrofiamos aquilo para que o nosso cérebro estava preparado.

Isso leva à ansiedade e ao estresse. E às circunstâncias muito difíceis pelas quais passam nossos adolescentes.

Temos índices preocupantes de saúde mental e isso acontece porque eles não estão bem.

BBC News Mundo - Você tende a criticar muito o conceito de autoestima, por quê?

Romera - A palavra autoestima agora aparece em todos os lugares. Você vê propagandas onde dizem "melhore sua autoestima comendo este iogurte".

A autoestima é a avaliação do autoconceito [conjunto de percepções e ideias que uma pessoa tem de si própria]. E o problema é que não temos um bom autoconceito.

Se minha mãe me diz todos os dias que sou linda, eu acredito e penso que sou a Claudia Schiffer.

Estou bem de autoestima, mas se a realidade é que tenho pernas tortas, e não tenho o mesmo tamanho de quadril e peito, terei problemas quando alguém não me ver como Claudia Schiffer e vou ficar triste.

O problema não é de autoestima, é de autoconceito. Autoestima é me conhecer com as pernas tortas, e não criar um falso autoconceito.

Este é o problema dos nossos filhos: dizemos que eles são os melhores. Você vê pais que pensam que seu filho de 8 anos é o Messi. E não é.

Você não conhece a dor que alguns meninos e meninas sentem porque fracassam com seus pontos de referência (pais, mães, responsáveis), porque eles acreditam que terão um Messi... Você é ruim e não tem problema algum. O que importa é descobrir aquilo em que você é bom.

A principal habilidade dos pais e professores é ouvir, mas quantas crianças são questionadas e levadas em consideração? É nisso que temos que pensar.

Alicia Hernández, a autora, é jornalista. Publicado originalmente pela BBC News Mundo, em 16.04.24

terça-feira, 16 de abril de 2024

Vigilância ativa nas eleições de 2024

O alerta é claro: não haverá tolerância para a usurpação de valores destinados a fortalecer a representação política de pessoas negras

Nas eleições municipais de 2024, estaremos diante de um marco significativo na história política do Brasil rumo à conquista da equidade na política. Um aspecto em que precisávamos avançar refere-se aos direitos do povo afro-brasileiro, pela sua efetiva representação nas esferas políticas. As normas recém-aprovadas aprimoram a Resolução 23.609/2019, editada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), num aspecto que se mostra crucial para o enfrentamento das fraudes nas declarações raciais, após inúmeras afrontas observadas nas eleições passadas.

O art. 17 da resolução que trata do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) já estabelecia uma diretriz importante: a reserva de recursos para as candidaturas de pessoas afro-brasileiras na mesma proporção de sua presença nas candidaturas lançadas por cada partido ou federação em todo o País.

Contudo, as eleições de 2024 marcam um ponto de virada ainda mais significativo neste processo. Com a nova exigência de que os partidos abram contas bancárias específicas para gerenciar os recursos destinados a pessoas negras, será possível verificar com maior exatidão e transparência se os partidos estão de fato cumprindo essa regra crucial. Esta inovação regulatória facilitará sobremaneira a fiscalização da correta destinação dos recursos, abrindo caminho para ações e representações judiciais contra os fraudadores. Tal mudança, sugerida pela Educafro Brasil nas reuniões da Comissão de Igualdade Racial do TSE, representa um avanço significativo na luta por uma política mais justa e representativa.

Para além disso, a partir de agora, quando um candidato declarar sua cor ou raça no registro de candidatura, essa informação será confrontada com dados fornecidos ao Cadastro Eleitoral ou em registros de candidaturas anteriores. Se houver divergências, o processo de verificação se iniciará automaticamente e esse candidato será chamado a se justificar.

Está estabelecido pelo TSE um mecanismo baseado na autodeclaração da raça, mas com confirmação. Se um candidato declara uma cor ou raça que difere do seu cadastro eleitoral ou de registros de candidaturas anteriores, ele e seu partido são automaticamente notificados para confirmar essa alteração. Se admitirem o erro ou não responderem, a declaração será ajustada para refletir os dados anteriores. Isso é importante, pois evita o uso indevido de recursos destinados especificamente a candidaturas negras.

Em caso de suspeitas ou irregularidades, o Ministério Público Eleitoral será acionado para investigar e tomar as medidas cabíveis. Este órgão deve atuar como um fiscal do processo eleitoral, garantindo que as regras sejam cumpridas e que os recursos sejam alocados de maneira justa e conforme previsto na legislação.

Os partidos políticos, por seu turno, são responsáveis por garantir que as declarações de seus candidatos sejam precisas. Para isso, podem, se desejarem, estabelecer comissões internas de heteroidentificação. Sob esses novos parâmetros, também será possível responsabilizar os dirigentes partidários pela participação em fraudes relativas às declarações raciais.

A sociedade civil também passa a desempenhar um papel ativo. Associações, coletivos e movimentos sociais têm, agora, o expresso direito de solicitar informações sobre as declarações raciais dos(as) candidatos(as). Esse direito é uma forma, chegada em muito boa hora, de envolver a comunidade na fiscalização do processo eleitoral, incentivando uma vigilância coletiva.

À medida que nos aproximamos das eleições de 2024, é imperativo lançar um alerta sério e firme a todos os partidos políticos e à sociedade brasileira como um todo.

Medidas judiciais, com base nesses novos marcos, permitirão até mesmo a cassação de mandatos obtidos com desvio de verbas destinadas ao povo negro.

A Educafro Brasil, entidade que desencadeou a luta pela implementação do financiamento especial para candidaturas negras, faz um chamado a todas as organizações sociais para uma vigilância ativa e responsável sobre as declarações raciais dos candidatos. A usurpação de recursos destinados especificamente às candidaturas negras por indivíduos a quem não se destinam constitui uma afronta à luta histórica pela igualdade e representatividade. Tais atos, de má-fé, não só subvertem a intenção dessas medidas, como também desrespeitam a luta contínua pela equidade racial em nosso país, ferindo a Constituição brasileira e a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, à qual recentemente aderimos e incorporamos à nossa ordem fundamental.

O alerta é claro: não haverá tolerância para a usurpação de valores destinados a fortalecer a representação política de pessoas negras. As próximas eleições serão uma oportunidade para avançarmos na construção de um Brasil mais justo, igualitário e representativo. Cabe a todos e todas nós garantirmos que esse objetivo seja alcançado com integridade e respeito à grande diversidade que nos define como nação.

Os autores deste artigo, Frei David Santos (OFM), é diretor-executivo da Educafro Brasil e Márlon Reis, advogado, é coordenador jurídico da Educafro Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.04.24